Em todo mês de setembro, no Rio Grande do Sul, iniciam-se os preparativos para a comemoração do dia 20, data que se comemora o dia em que os Farrapos, em 1835, iniciaram sua revolta contra o governo Imperial do Brasil, então sediado no Rio de Janeiro.

Poucos estados brasileiros celebram suas datas cívicas com tamanha empolgação. Em todos os cantos do Rio Grande são organizadas as celebrações. Os órgãos de imprensa escrita, falada e televisiva local tratam fartamente dos fatos do passado e suas homenagens atuais. A chamada Semana Farroupilha é festa pública desde que foi oficializada, em setembro de 1964, no início do Regime Militar (1964-1984). E todos os governos estaduais consecutivos, sem exceção, abraçaram essa comemoração cívica e militar.

Almoços, jantares, bailes, shows, conferências, acampamentos, desfiles, palestras, etc. são realizados na capital Porto Alegre e nas cidades do interior do estado, sobretudo por iniciativa e hegemonia do Movimento Tradicionalista Gaúcho, através dos seus milhares de Centro de Tradições Gaúchas (CTG). Unanimidade regional, a Semana Farroupilha congrega cidadãos de todas as regiões, origens e classes sociais. São reunidos nos festejos o patrão, o peão, o servidor público e privado, o bem ou mal empregado e o desempregado. Brancos, negros, mestiços, descendentes de italianos, alemães, polacos, portugueses, etc. Enfim, uma patriotada feliz e unificadora, igualada somente quando da entrada em campo da Seleção Brasileira de Futebol!

Travada entre 1835-45, a Guerra dos Farrapos foi mais um dentre os múltiplos movimentos armados liberais, republicanos, separatistas ou federalistas, organizados e lançados por elites proprietárias das diversas regiões do Brasil contra o Império. Na então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, a guerra farroupilha foi movimento elitista, iniciada por parcela da classe dominante local e com nenhum conteúdo popular. Promovida pelos grandes criadores sulinos, sequer contou com a unanimidade dos proprietários regionais. Nem de longe foi movimento de todos os habitantes do Rio Grande do Sul, como passou a ser apresentada em suas comemorações.

Pela independência dos senhores

A América portuguesa foi mosaico de regiões semi-autônomas, de frente para a Europa e África, de costas umas às outras. Produziam regionalmente o que exportavam pelos portos da costa, por onde chegavam os manufaturados e os africanos escravizados, onde um mercado interno praticamente inexistia. Um problema que sempre angustiou os defensores da independência de Portugal sempre foi o de como realizar tal emancipação sem comprometer a ordem escravista, base da produção em todas as províncias. Choques militares colocariam em perigo a submissão dos cativos e dificultariam a defesa do tráfico.

Os senhores sabiam que a guerra levaria à necessidade do alistamento e armamento dos subalternizados, inclusive de sua mão-de-obra escravizada. Outro problema seria as fugas, como quando da luta contra os holandeses, que contribuíam para o surgimento de quilombos, minúsculos ou grandes, como Palmares. Havia também o exemplo recente do Haiti, que assombrava o imaginário escravista em toda América. As províncias luso-brasileiras que abolissem a escravidão decerto receberiam (e teriam de acolher) multidões de fugitivos de outras províncias que não a fizesse.

O Estado monárquico, autoritário e centralizador do Império Brasil se formou em cima dessas condições, procurando manter a ordem e os interesses escravistas. A Independência de 1822 se deu de forma conservadora, dirigida por grandes proprietários e comerciantes de trabalhadores escravizados. E os ideários republicanos, separatistas e federalistas mais radicais foram sendo aos poucos reprimidos. A independência do Brasil foi considerada na História a mais conservadora das Américas. Os senhores brasileiros romperam com a coroa portuguesa e seu absolutismo, porém entronizando em seu Estado um herdeiro fiel do reino português. Cortavam certas amarras com Portugal, mas asseguravam os interesses luso-brasileiros. Mantiveram-se unidos para garantir o abastecimento e a exploração de sua mão-de-obra negra e escravizada. Eis uma explicação para o fato do Brasil não ter se fragmentado em vários Estados-Nações, como nossos vizinhos.

As forças liberais e federalistas nacionais se curvaram diante da proposta monárquica e unitarista, sob a condição que a autonomia provincial fosse discutida quando da Assembléia Constituinte, convocada antes mesmo da Independência. Digno filho dos Braganças, em fins de 1823, dom Pedro I autoritariamente pôs fim ao regime constitucional e às esperanças federalistas regionais, no que se tornou o primeiro golpe de Estado do Brasil.

Terra de lutas, rebeldias e golpes

O golpe anti-constitucional de novembro de 1823, e a constituição imposta, em 1824, no contexto de profunda crise da economia escravista exportadora da época determinaram período de forte instabilidade política e social entre as facções independentistas também se mobilizaram por maior autonomia de suas regiões.

Em 1824, a primeira revolta provincial contra o golpe bragantino foi promovida pelos republicanos pernambucanos - a Confederação do Equador. Mas foi sufocada em banho de sangue e vários de seus integrantes foram executados sem o julgamento garantido pela própria Constituição outorgada pelo Imperador. A concentração dos poderes e recursos provinciais pelo governo central terminou levando à deposição de dom Pedro I, em 7 de abril de 1831, pelos então farroupilhas, como eram chamados todos os liberais e republicanos na época. Porém, o poder deslizou para as mãos dos conservadores monarquistas detentores do poder econômico. Com a partida de dom Pedro I, concluía-se finalmente a independência política do Brasil e o poder central passava ao controle dos senhores do Rio de Janeiro.

As limitadas concessões regenciais às reivindicações federalistas e liberais lançaram o Império em grave crise. A permanente negação da Regência em conceder a sonhada autonomia às províncias quase pôs fim à unidade brasileira. Um rosário de movimentos liberais, federalistas e separatistas convulsionou o Império: Ceará (1831-2); Pernambuco (1831-5); Minas Gerais (1833-5); Bahia (1837-8); Grão Pará (1835-40), Maranhão (1838-41); Rio Grande do Sul (1835-45).

Possivelmente o centralismo imperial teria caído se cabanos, balaios, sabinos, praieiros, sul-riograndense, etc. tivessem coordenado suas lutas. Isolados, todos os movimentos farroupilhas regionais foram sendo esmagados sucessivamente. A Balaiada, no Maranhão, e a Cabanagem, no Grão-Pará, foram revoltas que assumiram caráter popular, com o ingresso de caboclos, trabalhadores escravizados, libertos, brancos pobres, etc. Fator que levou as classes dominantes, que as iniciaram, abandoná-las.

A revolta de fazendeiros sulistas

É um acaso que apenas os revoltosos sulinos sejam conhecidos pela denominação comum aos demais insurgentes do Brasil regencial: farroupilhas. Tem sido um erro constante de historiadores deduzir romanticamente que o termo tenha surgido por cauda dos uniformes em frangalhos dos combatentes do Sul. Baseiam-se em escritos como os de Olavo Bilac, que talvez estivesse se referindo somente aos soldados, mas generalizado pelos historiadores. Sem especificar origem social, cor, função, seriam todos os Farrapos: ?[...] desgraçados, sim, eram pobres, eram maltrapilhos, aqueles guerreiros que, para não morrer de fome, contentavam-se com um bocado de carne crua; acampavam e dormiam ao relento, com a face voltada para as estrelas; não tinham dinheiro, nem uniforme, e não podiam renovar as botas e os 'ponches' que o pó da estrada, as balas, as cutiladas, as chuvas estraçalhavam e apodreciam; [...] prezavam seu nome de Farrapos, e tinham orgulho de sua pobreza: [...] eram mais ricos assim, possuindo apenas o seu cavalo, a sua garrucha, a sua lança e a sua bravura [...].?

A pirâmide social no Rio Grande era bem mais rígida e definida que o poema de Bilac: em seu topo encontravam-se os grandes fazendeiros e os mais ricos charqueadores, grandes proprietários que valiam pela quantidade de terra e de escravaria que possuíam, sendo os senhores do pampa, chefes militares e políticos. Os pobres ?brancos? ou ex-cativos negros e mestiços libertados se debatiam no estreito espaço dessa sociedade latifundiária e escravista, podendo se empregar em um pequeno comércio, em funções administrativas humildes, como profissionais liberais, etc. O trabalho braçal era mal visto, tido por função de negro escravizado. Nas estâncias, a situação não era muito diferente, e o principal trabalho existente estava na pecuária, realizado por peões. O trabalhador escravizado se encontrava na base dessa organização social, nas cidades e no campo, utilizado na construção civil, nos serviços públicos gerais, nas charqueadas, nas olarias, nos transportes, no comércio, etc.

Apresentados ao longo do tempo geralmente de forma romântica e apologética na literatura regional, o chamado gaúcho inicialmente era um mestiço de branco com índio, um espanhol transbandeado, um nativo aculturado até um ex-cativo. Desprovidos de terra e cada vez mais cercados pelas propriedades aramadas, vender seu trabalho a um caudilho se tornou a principal forma de trabalho daquela gente, tratada com desprezo por aqueles que os exploravam nas lides do campo ou na subalternização militar.

No centro da discórdia dos farrapos do Sul com o os senhores do Rio de Janeiro estavam os impostos e a proteção alfandegária que favorecia produtos argentinos e uruguaios em detrimento do local. Estourou um republicanismo federalista em setores agro-pastoris descontentes. Bento Gonçalves da Silva, estancieiro líder do movimento rebelde, manifestava seu descontentamento ao que chamou de assalto do governo central contra o Rio Grande, província que, segundo ele, sustentaria as demais enquanto era desnacionalizada pelos legisladores do Império.

Tomar o controle político da província significava buscar alterar tal situação, ampliando os negócios na região Platina. Os Farroupilhas rio-grandenses reivindicavam assim a autonomia federativa, e, a seguir, por forças das circunstâncias políticas, a república separatista. A Nação dos fazendeiros eram as suas propriedades. A descapitalização parcial imposta pelo Império através dos impostos era a desnacionalização que Bento Gonçalves denunciava.

Por trás da ideologia Farroupilha

Algumas reivindicações e objetivos dos fazendeiros revoltados fizeram comerciantes, a pequena mas existente população urbana, os colonos alemães, e outros segmentos sociais a se afastaram dos farroupilhas e até mesmo a optaram pelo Império. Porto Alegre, por exemplo, resistiu por três vezes ao cerco rebelde, o que lhe rendeu o título de Mui Leal e Valorosa dado pelo Império.

Em carta de Bento Gonçalves a um amigo, o general comentou que os alemães da colônia de São Leopoldo, armados pelo deposto representante local do Império para resistirem aos rebeldes, não chegaram sequer a lutar e entregaram suas armas quando souberam que o líder farrapo não libertaria nem permitiria insurreição dos trabalhadores escravizados.

Um fator muito comemorado por alguns historiadores mais apologéticos da epopéia farrapa foi sua longevidade em relação às demais revoltas nacionais: os dez anos de duração da então chamada Revolução Farroupilha. Contudo, dos fatores principais que contribuíram para essa longevidade destaca-se o fato de que das tanto os revoltosos como seus rivais na luta sulina sempre mantiveram as classes subalternizadas à margem das tropas. As lutas entre 1835 a 1845 no Sul do Império representaram perigo menor, enquanto que outras revoltas precisaram ser mais bruta e rapidamente reprimidas, justamente por possuírem ou dirigirem-se à reivindicações mais radicalizadas.

Os Farroupilhas do Sul jamais foram revolucionários, se considerarmos o significado sociológico deste conceito. Em geral, não visaram a subversão da ordem estabelecida, a mudança estrutural, econômica, social e cultural de sua sociedade. Pode-se alegar que era o conceito de revolução para a época. Mas a auto-denominação faria também os golpistas do Brasil em 1964 serem considerados revolucionários.

A presença entre os farrapos de liberais estrangeiros, se irmanando à causa separatista e republicana, com uma abundante produção jornalística inclusive, onde eram citados Rousseau, Voltaire, Locke e outros pensadores em moda na época, criou a aparência de que existiu no Sul uma ideologia revolucionária. Mas por trás do discurso farroupilha havia a convicção de seus líderes em manter a estrutura socioeconômica, a grande propriedade latifundiária, a ordem, o mando político, tráfico e exploração da mão-de-obra escravizada intactos.

Se as conseqüências da luta levaram muito palidamente que se estabelecesse um governo que se aproximou da ideologia de liberais de jornal, isso foi mais um acidente que intenção. Na Sabinada, as idéias mais radicalizadas, ainda que confusas, tinham relativa importância. Já nos farrapos rio-grandenses, só assumiram valor quando serviram de alavanca para a insurreição. Não passou de propaganda, utilizada para justificar ações e encobrir objetivos. A aliança final dos fazendeiros rebeldes como veremos a seguir acabou sendo não com seu povo, mas sim com seus próprios inimigos, tudo explicitado em tratado de paz.

Algumas medidas tomadas pelos chefes Farroupilhas em relação ao negro escravizado serviram para que alguns historiadores ressaltassem um pretenso humanismo libertário do movimento rebelde, em especial o decreto que mandava sortear e fuzilar um imperial caso fosse preso castigando um cativo que pertencesse ou pretendesse cerrar fileira os farrapos. Também costuma-se destacar a composição das tropas rebeldes, em grande parte compostas por peões e cativos então libertados. A utilização de peões e cativos como soldados rasos aconteceu pelo simples fato de que a liderança Farroupilha (assim como a Imperial) preferia que outros morressem por seus interesses. Não foi um pretenso ideal liberal-republicano que levou a soldadesca à guerra. Quando os caudilhos trocavam de lado, em alguns casos várias vezes, como no caso de Bento Manuel, os peões os seguiam. Para o soldado, em geral, o ideário farroupilha significava soldo, churrasco, saque e, no caso dos escravizados, sair das senzalas.

O fato é que, em 1835, os farrapos rio-grandenses chegaram controlar quase toda a província. Porém, em 1845, encontravam-se isolados nas fronteiras da região, cada dia mais derrotados pelas tropas imperiais, por rachas, traições e disputas internas, tornando-se um verdadeiro saco de gatos, como a descreveu o corsário italiano Garibaldi ao abandoná-la.

A paz dos cemitérios

Depois de pacificar em banhos de sangue e assegurar o poder monárquico no resto da nação, em 1842 o futuro Duque Caxias começa suas ações político-militares contra os no Rio Grande do Sul. Organizador minucioso, Caxias refez o exército imperial, que passou a ter 12 mil homens (experientes mercenários estrangeiros, oficiais do Império, peões locais e milhares de cativos) e celebrou acordos com Manuel Oribe, visando impedir o refúgio dos farrapos no Uruguai.

A derrota dos rebeldes era questão de tempo, assim os Farrapos resolveram aceitar um acordo, em um Tratado de Paz que explica quase todas as contradições desta guerra. Destacamos alguns artigos acordados:

I - O indivíduo que for pelos republicanos indicado presidente da Província será aprovado pelo Governo Imperial e a presidirá.

III - Os oficiais republicanos que por nosso Comandante-em-chefe forem indicados passarão a pertencer ao Exército do Brasil no mesmo posto, não serão obrigados a servir.

IV - São livres, e como tais reconhecidos, todos os cativos que serviram na República.

VI - É garantida a segurança individual, e de propriedade, em toda sua plenitude.

X - O Governo Imperial tratará definitivamente da linha divisória com o Estado Oriental.

Final feliz que revela o conchavo entre os proprietários de ambos os lados. Chegou a ser considerado como um rasgo de filantropia do Império por um dos ministros farrapos, Manuel Lucas de Oliveira. Já o outrora considerado bravo republicano David Canabarro transmitia em carta a segurança aos seus companheiros, em uma desavergonhada bajulação que antes dissera não existir nos duros homens do Sul e sim somente aos membros da Corte carioca:

"A cadeia de sucessos por que passam todas as revoluções tem transviado o fim político a que nos dirigíamos [...] vossa segurança individual e de propriedade está garantida pela palavra sagrada do Monarca [...] União, fraternidade, respeito às leis, e eterna gratidão ao ínclito presidente da Província, o Ilmo. Sr. Barão de Caxias [...]".

Caxias se tornou o presidente da Província, como mandava o artigo I. De acordo com o artigo III, os oficiais rebeldes garantiram seus postos e soldos no Exército Imperial (os que não aceitaram, foram anistiados). O artigo VI acalmou a todos, garantindo intacta as suas propriedades. E o X ainda prometia defender os rio-grandenses nas propriedades e comércio platino.

Mas havia o artigo IV, que prometia a libertação dos escravizados que lutaram naquela guerra.

Os Lanceiros Negros e a traição em Porongos

Quando chamado às armas, o homem livre podia enviar um cativo de sua propriedade em seu lugar. Em geral, alforriava um de seus trabalhadores escravizados e o alistava. Também buscavam atrair ou tomar cativos dos escravistas inimigos ou os compravam dos escravistas próprios escravistas revoltosos.

Os primeiros a utilizar negros escravizados como soldados foram os imperiais. Precisando também formar uma infantaria e vendo a habilidade e, principalmente, a conveniência de enviá-los como bucha-de-canhão, foram também empregados pelos insurgentes. Ambos prometiam liberdade ao cativo que desertasse das tropas rivais e mudassem de lado. A maioria dos cativos que combateram nesta guerra foi obrigada a fazê-lo diante das condições impostas. Por outro lado, apesar de também dura era preferível a vida militar, com seus esporádicos combates, do que as agruras diárias da escravidão. A promessa de liberdade após o fim da luta certamente deve ter influenciado em muito o recrutamento dos cativos para ambos exércitos.

Não houve igualdade nas tropas farrapas, muito menos democracia racial. Negros e brancos marchavam, comiam, dormiam e morriam separados. Os oficiais dos combatentes negros eram brancos, e jamais um negro chegou a um posto significante, mesmo que intermediário, de comando. Aos Lanceiros Negros era vedado o uso de armas de fogo ou espadas. Não podiam lutar a cavalo, pois havia o risco de se rebelar ou fugir. Restava-lhes apenas as lanças de madeira que deram seu nome e fama, facas, facões, pequenas garruchas, os pés descalços, a bravura e o anseio por liberdade prometida.

A Constituição Farroupilha dizia que a República do Rio Grande era a associação política de todos os cidadãos rio-grandenses, formada por homens livres nascidos no território da República. Mesmo descendentes de africanos comprovadamente nascidos no Brasil não eram à época considerados brasileiros ou rio-grandenses. E o conceito de cidadania daquela época não pode ser confundido com os atuais. Cidadãos, então, eram apenas alguns poucos homens, brancos, letrados e proprietários.

Os principais chefes farrapos foram ferrenhos escravistas. Quando aprisionado e enviado para a Corte, Bento Gonçalves teve o direito de levar consigo um cativo doméstico para lhe servir. Ao morrer, o líder farroupilha deixou terras, gado e quase cinqüenta trabalhadores escravizados aos seus herdeiros. Bem diferente do que fizera Artigas no Uruguai, os fazendeiros rebeldes do Sul jamais propuseram uma reforma agrária ou mesmo uma distribuição de terras entre seus soldados. A defesa da escravidão era tão clara entre os farrapos que sequer mencionaram o fim do tráfico negreiro.

Os rebeldes incluíram entre suas exigências ao Império a prometida liberdade aos lanceiros negros. Sobretudo porque temiam que eles formassem uma guerrilha negra na província e também porque sabiam que a quebra da promessa poderia acarretar em luta ou debandada geral destes ao Uruguai, que já havia abolido a escravidão e, não raro, tornara-se o destino de diversos cativos fugitivos.

A questão foi resolvida na madrugada de 14 de novembro de 1844, quando o general farrapo David Canabarro entregou seus soldados negros desarmados ao inimigo, tudo previamente combinado. No serro de Porongos foi dizimada a infantaria negra, enterrando de vez a preocupação dos senhores revoltosos e acelerando assim a paz entre os senhores.

A instrução de Caxias a um de seus comandantes foi objetiva: a batalha teria que ser conduzida de forma a poupar dentro do possível o sangue de ?brasileiros?, em particular ?homens brancos da província, ou índios, pois bem sabemos que essas pobres criaturas ainda nos poderão ser úteis?.

A batalha foi considerada pela historiografia apologética dos farrapos como que sendo uma Surpresa, afirmando que teria sido a primeira vez que o então sempre vigilante Davi Canabarro teria sido surpreendido. Enquanto dispôs suas tropas de maneira tal que a totalidade dos negros ficasse desarmada e descoberta, algo que então nunca havia feito, Canabarro se encontrava bem longe e seguro do local do massacre, entregando-se aos amores de Papagaia, como apelidara uma amante sua.

Após o combate, um relato oficial dizia a Caxias que pelo menos 80% dos mortos em Porongos eram negros, de ambos os lados. Calcula-se que, nos últimos anos da revolta, os farrapos somados não ultrapassavam cinco mil homens, sendo que menos de um terço seriam lanceiros negros. Após o Massacre de Porongos, restaram apenas perto de 120 sobreviventes, que foram primeiramente enviados para uma prisão no centro do país e depois dispersados para outras províncias, ainda como escravizados. Após isso, deu-se a chamada rendição do Poncho Verde, onde senhores trocaram abraços e promessas de lealdade, fizeram as pazes e, logo depois, marcharam todos juntos e sob a mesma bandeira contra o Uruguai, Argentina e, mais adiante, contra o Paraguai.

Tradição e disputa pela memória

Nas décadas seguintes ao fim da guerra separatista no Sul do Brasil, facções das elites locais se apropriaram da memória Farroupilha, adaptando-a aos seus objetivos diversos, que foi permitido sobretudo pelo assinalado conteúdo nulamente popular daqueles eventos.

No Segundo Reinado (1840-1889), o desenvolvimento da cafeicultura em São Paulo e no Rio de Janeiro, relançou na região Sul a criação de mulas para o transporte e a produção de charque para as unidades de produção escravistas em todo país. A boa conjuntura permitiu às elites pastoris rio-grandenses retomar o poder político local, através do Partido Liberal, hegemônico no Rio Grande de 1866 a 1889.

O Partido Liberal expressava as posições análogas a dos criadores que haviam dirigido a revolta de 1835. Devido à importância dos cativos nas fazendas e charqueadas, os liberais locais em maioria defendiam com unhas e dentes a escravidão. O negro escravizado era também parte da propriedade inviolável do liberal rio-grandense. O tribuno Gaspar Silveira Martins, liberal e escravista descendente dos velhos chefes farrapos, declarou ?amar mais sua pátria que o negro? durante os debates contra abolicionistas. Por pátria, como seus ancestrais, entendia sua propriedade.

Liberais reivindicaram facilmente a memória farroupilha, que sociologicamente lhes pertencia, só que agora com o advento de serem todos monarquistas, Defendiam apenas uma maior descentralização do poder, abandonando outrora ideais republicanos e separatistas dos Farroupilhas de 1935.

Na mais urbanizada Porto Alegre de 1878, ou seja, sob o império dom Pedro II, foi fundado o Clube Republicano Bento Gonçalves, e em seguida surgiram outros em clubes republicanos do interior da província. Saídos das frágeis classes médias urbanas, burocratas e de alguns descendentes de fazendeiros, os primeiros neo-republicanos sulinos desenvolveram ativa agitação anti-monarquista e até abolicionista, com poucos resultados em uma região dominada pelos grandes criadores escravistas. A memória farroupilha foi sendo apropriada por grupos sociais, geográfica e politicamente estranhos ao movimento de 1835. Iniciava e acelerava-se assim a invenção de uma tradição forjada.

Em fevereiro de 1882, na capital Porto Alegre, perto de 50 delegados elegeram comissão organizadora do Partido Republicano Rio-grandense (PRR), hegemonizado por jovens filhos de médias e ricas famílias rio-grandenses em oposição aos liberais escravistas. Muitos haviam chegado da escola de Direito de São Paulo. Buscavam uma modernização conservadora do Rio Grande do Sul.

Trocando de mãos

No início de 1880, em São Paulo, alguns desses universitários (Borges de Medeiros, Júlio de Castilhos, Pinheiro Machado, etc) fundaram o Clube 20 de Setembro, para celebrar o republicanismo sulino do passado (e de então). Em 1882, a pedido dos seus correligionários, o jovem Assis Brasil escreveu uma História da república rio-grandense, permeada de mitos sobre o heroísmo dos farrapos de 1935.

O PRR desenvolveu virulenta pregação republicana e federalista. Os jovens jacobinos defendiam a autonomia regional, industrialização e uma diversificação produtiva diante da estagnação da economia pastoril-charqueadora. A República dos Farroupilhas de Bento Gonçalves se tornou uma referência e propaganda dos positivistas radicais, adeptos das pequenas pátrias de Auguste Comte.

Momentos antes da Proclamação da República, o republicano Júlio de Castilhos propôs a celebração do 20 de Setembro no Rio Grande do Sul. Em 15 de novembro de 1889, os republicanos sulinos também empalmaram o poder na região, institucionalizando suas versões do passado Farroupilha. Em 14 de julho de 1891, foi promulgada a nova Constituição Republicana estadual (cada estado tinha a sua), com um anteprojeto de Júlio de Castilhos. Ela determinava que as insígnias oficiais do Rio Grande do Sul deveriam ser as mesmas do pavilhão tricolor (verde, vermelho e amarelo) criado pelos rebeldes do passado.

Para se manterem no poder e implementar seus projetos, os republicanos positivistas sulinos tiveram que derrotar militarmente os criadores liberais e monarquistas, até então hegemônicos na região, na mais sangrenta guerra civil conhecida pelo Rio Grande. Tal conflito, que se desenrolou entre 1893-5, segundo alguns historiadores faria a revolta farroupilha de 1835 parecer briga de namorados. A chamada Revolução Federalista ceifou mais de dez mil vidas, em população de um milhão de habitantes. Republicanos acusavam os indignados criadores liberais federalistas de monarquistas e separatistas, traidores da República Rio-Grandense, que assim escorregava de vez para a mão do PRR, que alicerçou simbolicamente o republicanismo (antigo e de sua época) até 1930.

No discurso e nova versão dos fatos passados, a memória farroupilha passou a ser herança de todos os rio-grandenses, não importando sua origem étnica, social e regional. Brancos, negros, ricos, pobres, campeiros, urbanos, etc., todos seriam herdeiros dos farrapos de 1835. O movimento, nesta versão manipulada da história, passou a ser de todo o Rio Grande unido contra o Império monárquico instalado no Rio de Janeiro.

Queimando e re-costurando bandeiras

Na República Velha (1889-1930), o Rio Grande manteve sua autonomia federal assentada em uma economia em boa parte voltada para o mercado interno. Nesses anos, o Estado praticamente desconheceu a intervenção federal.

Mas a relativa independência sulina sofreu modificações após a ascensão de Getúlio Vargas em 1930 e, sobretudo, com o golpe do Estado Novo em 1937, que promovia a propagação nacionalista fascistóide que buscava consolidar ideologicamente a formação em curso do mercado e indústria nacionais centrados no eixo Rio-São Paulo. Durante sua Proclamação ao Povo Brasileiro, de novembro de 1937, Vargas denunciou o caudilhismo regional como ameaça da unidade brasileira. Em gesto simbólico, mandou queimar publicamente as bandeiras regionais. Entre elas, a do Rio Grande do Sul criada por seus velhos mestres Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros.

O Estado Novo promoveu a invenção de uma cultura brasileira, substrato da identidade nacional proposta e imposta. Apoiou fortemente a Seleção Brasileira de Futebol, o carnaval e samba carioca, o surgimento de arquitetura moderna nacional, etc. Adaptou e criou órgãos e associações destinados à divulgação de um sentimento de amor à Nação: a Liga de Defesa Nacional, o Departamento de Imprensa e Propaganda, a Juventude Brasileira, a Hora do Brasil, a Rádio Nacional, etc. A campanha de nacionalização reprimiu os sentimentos regionalistas da República Velha e seus caudilhos regionais liberais agro-exportadores. O separatismo Farroupilha do passado foi execrado. Historiadores do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS) ocultaram ou mesmo negaram o independentismo dos farrapos de 1935.

A dominância das relações econômico-sociais nacionais sobre as regionais exigia que o sulino deixasse de ser essencialmente rio-grandense para ser, sobretudo, brasileiro. Enquanto, regionalmente, a uma identidade dita gaúcha (na verdade uma romantização da vida agropastoril e do antigo gaúcho metamorfoseado em peão ou patrão estancieiro) prosseguia sufocando diversas identidades existentes, de origem africana, imigrante, urbana, operária, etc. Durante o Estado Novo, a posição relativa do Rio Grande recuou ainda mais em relação ao Rio de Janeiro e São Paulo, que se industrializaram aceleradamente, mantendo-se no Sul a importância da produção agro-pastoril. As classes dominantes rio-grandenses aceitavam tal subordinação, pois estavam preocupadas em manter sua hegemonia política na região.

Após a redemocratização conservadora de 1945, a perda de importância relativa do Rio Grande proporcionou movimentos culturais regionalistas que reafirmavam a especificidade do gaúcho em oposição à proposta nacional-centalizadora getulista, que, diziam, os marginalizara. Em vez de romperem com realidade fortemente responsável pelo atraso sulino, os tradicionalistas reivindicaram o passado rural-latifundiário arcaico, apresentando-o em forma utópica e idealizada, como se tivesse sido uma Era de Ouro perdida.

Ode ao latifúndio

Em 1947, em plena Porto Alegre urbanizada, alguns intelectuais e filhos de proprietários rurais fundaram o movimento regionalista que cultuavam uma ideologia latifundiária. O movimento era igualmente uma rejeição ao plebeísmo democratizante da nova sociedade urbanizada e industrial nacional e local. Apoiados no mito da democracia pastoril, fizeram uma releitura tradicionalista do passado que retomava a interpretação liberal-federalista do movimento Farroupilha, abandonando a leitura urbana castilhista. A Guerra dos Farrapos, ou melhor, Revolução Farroupilha, ressurgia como uma expressão do passado pastoril-latifundiário, pretensiosamente mostrado como se fosse a essência última da civilização rio-grandense, ou melhor, gaúcha.

O novo tradicionalismo se organizou em torno de seus Centros de Tradições (CTGs), onde impera uma recriação lúdica da fazenda pastoril, onde um fictício patrão protetor e benevolente confraterniza com seus peões e um harmonioso e caramelado mundo à parte.

Recriando o passado segundo suas necessidades, o tradicionalismo ignorou simplesmente o trabalhador escravizado no passado sulino e nas fazendas pastoris. Se a maioria das obras literárias tradicionalistas fossem transformadas em peças de teatro, apresentariam o negro apenas como pano de fundo, montado ou pintado, estático, como árvore, pedra, bichos e demais partes de um cenário sem vida de um palco tomado por protagonistas brancos, românticos e heróicos. Como se fosse possível produção sem trabalho, guerras sem soldados, onde só combatessem generais de capa e espada.

O Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) nasceu com a Guerra Fria, em 1947, quando os trabalhadores rio-grandenses e brasileiros lutavam para se expressar, conquistar direitos, solucionar seus problemas, materializando também nas esferas políticas e culturais locais os antagonismos profundos nacionais e mundiais. Obviamente, o papel do MTG, diante disto, foi conservador e não progressista.

No contexto de sociedade crescentemente industrial, o tradicionalismo construiu discurso ideológico que visou, e tem sido vitorioso nisso, sufocar demais consciências e expressões que apresentem as contradições sociais da nossa sociedade, com seu mito do destino comum de explorados e exploradores. Representando o culto ao latifúndio e de seu proprietário, o fazendeiro, na hierarquia dos CTGs reina, absoluto, esse patrão fantasiado de peão, seguido por seus capatazes, cavalos, cães e, por fim, sua prenda, a mulher, mais ou menos nessa ordem! Após os desfiles que comemoram a revolta dos fazendeiros do passado (e exalta os atuais), todos devem voltar aos seus devidos lugares na sociedade.

Trincheiras da razão

O capital industrial no Rio Grande do Sul, mesmo após tornar-se hegemônico, apoiou o tradicionalismo justamente por sua essência conservadora, já que a relativa debilidade econômica do setor primário o descarta como força política concorrente dos industriais, Fazendeiros são, no máximo, sócios dos poderosos banqueiros, grande comerciantes e industriais neste estado. Nos dias atuais, é sobretudo o agro-negócio, as empresas de celulose e o monopólio das sementes transgênicas pela Monsanto que movimenta esses setores tradicionais da classe dominante regional e nacional, defendidos abertamente pela imprensa local e nacional.

Em 1964, após o golpe de Estado, a Assembléia Legislativa institucionalizou a Semana Farroupilha entre 14 e 20 de setembro. Décadas mais tarde, o dia 20 de setembro foi declarado feriado regional. Amparado pelo poder privado e governamental, o MTG se dedicou à divulgação desta tradição conservadora inventada que sufoca a rica, plurifacetada e em grande parte desconhecida história do trabalho do homem e da mulher do Sul do país.

Chega o mês de setembro no Rio Grande do Sul e uma onda de pseudo-patriotismo mais chauvinista toma conta deste estado. Governantes e demais políticos propõem leis recheadas de demagogia e ideologização. Em algumas câmaras de vereadores, já se legislou obrigatório o uso de bombachas, por exemplo, que sequer existiam na época dos farrapos, somente vindo a ser utilizada no pampa por imposição da Inglaterra, que por causa da Guerra na Criméia não conseguia vender sua manufatura aos árabes. Empresários visam os ganhos dos lucros de um turismo as custas da banalização, inaugurando estátuas e demais homenagens ao movimento Farroupilha onde este jamais pisou. E, para piorar, até professores rasgam manuais de pedagogia ao forçarem seus pupilos a freqüentar ou reproduzir nas escolas as tradições inventadas dos CTGs.

Como a classe trabalhadora será representada num parlamento onde é obrigatório se vestir como um peão, ou seja, um empregado atrelado ao patrão latifundiário? Como desenvolver um senso crítico em nossos estudantes se absorvemos sem contraponto a ideologia do tradicionalismo? A ideologia conservadora desse gauchismo inventado tenta inclusive se impor através do apelo religioso. Missas são rezadas na Semana Farroupilha onde deus é mostrado como o patrão do céu. O paraíso, em alusão a fazenda, ganha cercas de arame farpado. Mesmo Jesus é metamorfoseado num tropeiro que leva as almas para tal latifúndio divino de seu pai. Como alguém poderá contestar os patrões se o próprio deus pertence a esta classe? Como poderá alguém ocupar e resistir em uma dessas propriedades se ela é comparada ao próprio céu?

Cabe aos que conseguem manter um senso crítico diante de tanta patriotagem e alienação se entrincheirar e resistir a tamanha ideologização, que se apresenta como tradição, mas que não passa de doutrinação. Entre um mate e um assado, oxalá possamos desfrutar do companheirismo daqueles que defendem o que sobrou do bom senso, com consciência crítica e com base nas versões de História sem milongas.

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Bibliografia:
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* Palestra apresentada em 14 de setembro de 2005, no Galpão do Movimento Negro (sítio do Cipreste Farroupilha), nas comemorações da Semana Farroupilha em Guaíba-RS, onde um CTG e Movimento Negro locais propuseram neste ano de 2005 homenagear os Lanceiros Negros.

**Hemerson Ferreira é professor municipal na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil, é Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF), Graduado em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), todas do RS.