Por
Mário Maestri
Em
20 de setembro de 2002, em pleno centro de Porto Alegre, durante
celebração da
Semana Farroupilha, membros do Movimento Tradicionalista Gaúcho
sovaram a relhaços militante do movimento gay que se introduzira,
montado e pilchado, na parada regionalista, com a bandeira do
arco-íris, símbolo mundial da luta contra a discriminação
sexual e pela paz. Ao passar diante do palanque do governador do
Estado, Olívio Dutra, também vestido de gaúcho, o ativista gritara
ser aquela a "verdadeira bandeira da revolução". Em
inícios de 2005, em Centro de Tradições Gaúchas de Passo Fundo,
no norte do Rio Grande do Sul, professor foi expulso do salão de
festa por portar brinco em uma orelha. Segundo o patrão do clube,
folcloristas e o presidente do Movimento Tradicionalista Gaúcho, o
adereço agredia por sua feminilidade a procurada figuração
contemporânea do gaúcho histórico.
O
ato público de covardia grupal homofóbica de 2002, ou o
comportamento autoritário e machista de 2005, materializam a
angústia do movimento tradicionalista diante da simples sugestão de
que o gaúcho do passado, objeto paradigmático das recriações
encenadas pelos cetegistas do presente, tenha conhecido, mesmo
marginalmente, orientação homossexual. Uma realidade que negaria a
essência mítico-histórica proposta para o personagem, apresentado
como símbolo do rio-grandense de ontem, hoje e sempre. Entre as
principais atribuições do tradicionalismo ao gaúcho destaca-se a
qualidade, cantada em prosa e verso, de ser tão, mas tão totalmente
macho, que essa macheza desbragada terminou virando motivo de
jocosidade geral, de além e aquém Mampituba.
A
desembargadora Maria Berenice Dias, do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, ao rechaçar publicamente a agressão física ao
militante gay, de 2002, teria feito a pergunta cuja verbalização
faz tremer o tradicionalismo sulino: "Por que não pode existir
um gaúcho gay de bombachas?" (Época, 227, 23.09.02.
www.epoca.com.br) Ou seja, em palavras simples e sem floreios: "O
gaúcho do passado, cavaleiro vagabundo dos campos indivisos,
centauro destemido dos pampas, guerreiro indômito do sul das
Américas, motivo de lendas e romances, poderia ter sido,
eventualmente, gay?"
Por
vocação ou necessidade
Desconheço
se há estudos históricos científicos sobre a orientação sexual
do gaúcho, questão de não desprezível interesse, nem que seja
como contribuição para a superação tendencial das propostas
homofóbicas construídas em torno desse personagem, permanentemente
esvaziado de seu sentido histórico pelas representações
mítico-triviais do passado, que o confundem, mais e mais, com o
fazendeiro, seu antagonista social. Porém, por razões óbvias, sem
o apoio de qualquer dado histórico positivo, podemos afirmar que a
gauchada dos pampas sulinos, uruguaios e argentinos, como qualquer
outra população masculina, em qualquer local e época, dividiu-se
em uma maioria de heterossexuais e uma minoria de homossexuais.
Em
forma muito geral, as práticas homossexuais correspondem à
realização dos impulsos sexuais de indivíduos orientados
eroticamente para o mesmo sexo ou como derivativos nascidos da
impossibilidade de objetivação de orientação heterossexual.
Especialistas defendem que, em qualquer situação e época, de
quatro a quatorze por cento da população masculina seria
homossexual [homossexuais exclusivos, segundo Alfred Kinsey, 1949],
divergindo sobre as origens genéticas, psicológicas, sociais etc.
do fenômeno. O impulso homossexual derivativo nasceria comumente de
isolamento de população do mesmo sexo, em conventos, quartéis,
internatos, presídios, navios, etc., campo fértil para a realização
dos impulsos homossexuais dominantes ou subordinados e de práticas
sexuais derivativas.
Essa
distribuição natural da população, tendo nos seus extremos uma
maioria hétero e uma minoria homossexual, constitui apenas o ponto
de partida de uma eventual investigação sobre a sexualidade da
população gaúcha ou de qualquer outra. Isso porque as orientações
sexuais profundas e derivativas materializam-se no contexto de
inúmeras e complexas determinações sociais, culturais, etc.
Portanto, a questão não é saber se houve ou não gaúchos
homossexuais, já que tal questão registra, em si, profunda
ignorância e preconceito sobre a sexualidade humana,
mas sim desvelar como o gaúcho homossexual teria vivido sua
orientação homoerótica,
nos diversos espaços geográficos e de tempo.
Entretanto,
a questão sobre a orientação e objetivação das tendências
sexuais do gaúcho
torna-se ainda mais complexa devido ao fato de dispormos de
informação histórica positiva que pode sugerir, hipoteticamente,
que as práticas homoeróticas não fossem incomuns entre a população
gaúcha heterossexual, devido precisamente às características
singulares da forma de vida e de produção desse habitante do pampa
sul-americano, como assinalado, motivo de infindáveis narrativas e
figurações, dos mais diversos cunhos, em geral profundamente
românticas e folclorizadas.
Falando
mal
José
Feliciano Fernandes Pinheiro nasceu em Santos, em 1774, em família
abastada. Com 18 anos, partiu para Portugal, formando-se em Direito
Canônico em Coimbra. Com as finanças familiares abaladas,
estabeleceu-se em Lisboa, trabalhando como tradutor. Em 1800, viajou
para a colônia brasileira, para ser juiz da alfândega das
capitanias de São Pedro e Santa Catarina e auditor dos regimentos do
Rio Grande. José Feliciano publicou, em 1819-22, os célebres Anais da
Província de São Pedro, tidos como primeira história orgânica do
Rio Grande, escritos desde a ótica de um burocrata de destaque do
império lusitano.
Na
primeira edição dos Anais, José Feliciano desanca literalmente a
sociedade e o habitante
sulinos. Define os rio-grandenses como "inertes e vários, e de
natural ferino" e propõe que os "roubos, mortes e
atentados" dominassem o interior, devido aos "poucos
progressos" da "moral", das "leis" e do
"espírito de sociedade" locais, ensejados pelo "ruim
fermento" da população original, constituída pelo "enxurro
da nação", ou seja, "degredados" e "mulheres
imorais e banidas". Isso porque os poucos "casais"
açorianos, de límpido sangue lusitano, teriam "emigrado"
devido ao descumprimento das promessas públicas.
O
paulista enxovalhou igualmente sem dó a sociedade pastoril, ao
anatematizar o churrasco, causa segundo o mesmo da "insensibilidade"
com o "espetáculo da dor e da morte" do "estancieiro"
e do "charqueador", que despedaçavam a "cada passo uma
rês". Para ele, os "devoradores de vianda em geral"
seriam "mais cruéis e ferozes" do que o homem normal. Ao
referir-se à fazenda pastoril, registrou afirmação intrigante.
Propôs nada menos que, devido à "inércia" da estância,
o seu habitante conheceria a "moleza, a ociosidade e a
devassidão", causas de "misérias" e, muita atenção,
da baixa "multiplicação da espécie humana".
Não
apenas na época, sobretudo no mundo católico homofóbico ibérico,
acusava-se a sodomia, ou seja, a homossexualidade masculina, como
forma de "devassidão" responsável pela frustração da
"multiplicação da espécie humana". Essa interpretação
deve ser tomada em sentido hipotético, ao lado de outras eventuais
leituras, devido ao caráter obscuro e sintético da afirmação de
José Feliciano. Porém, vinte anos mais tarde, um outro autor de
narrativa muito conhecida do Rio Grande voltava a tocar, na mesma
tecla, com ainda maior intensidade, sugerindo, assim, que a dupla
fumaça poderia ser indício de um único foco de fogo.
Nicolau
Dreys nasceu em 1781, na França. Funcionário público e militar
bonapartista, viajou ao Brasil, após 1815, dedicando-se ao comércio.
Conheceu diversas províncias, vivendo no Sul, na capital e no
interior, em fazendas e charqueadas, de 1817 a 1827. Dreys publicou
sua Notícia descritiva da província do Rio Grande de São Pedro do
Sul, em 1839, no Rio de Janeiro, onde faleceu, em 1843.
Sua Narrativa traz rica informação sobre o gaúcho, sua gênese e
principais características. Ao concluir seu valioso depoimento,
propõe que o gaúcho literalmente não gostava de mulher, devendo-se
a isso a sua baixa proliferação, para o francês, fenômeno
positivo, devido à fereza daquele tipo social.
No
me gustan las chicas!
"Os
gaúchos parecem pertencer a uma sociedade agyne [sem mulher], como
dizia [Francesco] Algarotti, que viviam no seu tempo os Tártaros
zoporojos; pelo menos, os gaúchos aparecem geralmente sem mulheres e
manifestam mesmo pouca atração por elas, felizmente para seus
vizinhos, a quem sua multiplicação, acompanhada de desejos
tumultuosos, poderia causar desassossego [...]." Também a
importante proximidade entre as propostas de José Feliciano e
Nicolau Dreys
não pode ensejar afirmações conclusivas, despropositadas e
peremptórias. Não deve, porém, ser desconhecida e desconsiderada
como ponto de partida para investigações
mais detidas.
O
gaúcho surgiu no Prata, sobretudo como nativo destribalizado ou
mestiço de europeu e pampiano ou guarani, vivendo em forma
semi-nômade em campos abertos ainda que em geral apropriados
privadamente, em contato intermitente com a sociedade ibérica.
Segundo explicações etimológicas mais comuns, gaúcho teria se
originado da palavra quechua, importante idioma andino, "huachu"
ou "huakcho", com o significado de "órfão",
"vagabundo", "errante", "sem raízes".
O nome não possuía feminino, já que não havia uma gaúcha. Na
língua araucana, falada no sul do Chile e da Argentina pelos
mapuches, "huaso" descreve o "habitante do campo"
e "gatchu", "amigo" ou "parceiro".
No
Rio Grande, mas sobretudo no Uruguai e na Argentina, o gaúcho
incorporou-se, em
forma permanente e episódica, à fazenda pastoril, como peão, o que
não deve ensejar confusão entre os dois termos, já que o primeiro
é atinente, originalmente, a uma etnia e cultura e, o segundo, a uma
profissão. Nem todos os peões
eram gaúchos e nem sempre o gaúcho trabalhava como peão. Segundo
parece, sobretudo a partir dos anos 1870, quando os campos começaram
a ser cercados, transformando o cavaleiro vago em intruso, o gaúcho
foi definitivamente apealado pela necessidade econômica à fazenda,
confundindo-se até
mesmo etimologicamente com o peão.
Se,
nos campos abertos, o gaúcho podia fazer-se acompanhar por uma
companheira, em geral uma china - mulher, em quíchua - e, ainda com
maior dificuldade, por algum filho, ele era aceito na fazenda
pastoril apenas como trabalhador sem laços familiares. O custo de
manutenção do peão e de sua família era dificilmente coberto pelo
trabalho marginal que sua mulher e filhos pequenos forneceriam.
Sobretudo, o fazendeiro temia que núcleos familiares de peões
criassem laços familiares, societários e com a terra que
questionariam inevitavelmente a posse latifundiária.
Eternamente
solteiros
Na
fazenda, além do fazendeiro, apenas o capataz, na sede, o posteiro,
nas bordas da propriedade, e o cativo, nas senzalas, acasalavam-se
normalmente, assegurando
a baixa reprodução da mão-de-obra livre e escravizada necessária
à produção
pastoril. O cativo, campeiro ou não, podia se casar e multiplicar,
como parece
ter feito abundantemente no sul do Brasil, pois produzia seres que
tinham no fazendeiro seu verdadeiro pai sociológico, já que eram
dele propriedades e a ele deviam obediência e trabalho.
O
peão, ao contrário, permanecia solteiro, dormindo no galpão, ao pé
do fogo ou, mais tarde, em pequeninos dormitórios coletivos. Os
levantamentos arquitetônicos das fazendas rio-grandenses dos séculos
18 e 19 registram a presença da sede, do galpão, da senzala, dos
depósitos, dos currais e jamais de moradias unifamiliares para os
peões. Essa triste condição do peão manteve-se quase plenamente
até poucos anos.
Estudo
de 1964 registrou que, nas fazendas rio-grandenses estudadas, 75% dos
peões eram solteiros, enquanto praticamente 71% dos capatazes eram
casados. Sobre os peões, Laudelino Medeiros, autor desse valioso
levantamento, registrou: "As mais das vezes dormem numa peça
junto ao galpão, mais propriamente uma divisão no galpão: o quarto
dos peões. Ali se encontram quatro ou cinco camas rústicas (...).
São poucas as fazendas que têm quartos individuais ou de dois para
os empregados." Os poucos peões casados dormiam em geral nos
dormitórios coletivos e visitavam a família uma vez por semana.
Cada
modo e forma de produção tem sua lei demográfica tendencial.
Carente de braços, a economia colonial-camponesa ensejou explosão
demográfica, impondo à camponesa
papel de verdadeira parideira, de conseqüências fisiológicas,
psicológicas e sociais que apenas começam a ser estudadas. A
produção pastoril latifundiária e extensiva exigia escasso emprego
de mão-de-obra, determinando muito baixos acasalamento e reprodução
dos trabalhadores livres, fenômenos registrados no despovoamento
relativo das regiões envolvidas pela economia pastoril, no RS, no
Uruguai e na Argentina. Uma realidade imposta pelo fazendeiro em
detrimento das necessidades e anseios, conscientes e inconscientes,
do gaúcho-peão. Nesse sentido, acertava Dreys, ao ver no gaúcho um
homem sem mulher, mas errava, redondamente, em sugerir que o fenômeno
pudesse dever-se a sua pouca simpatia com o frágil ser do sexo
feminino.
O
barranco e o gaúcho
A
falta de mulheres, a dificuldade em constituir família, os longos
períodos vividos dioturnamente apenas entre homens, nos campos, na
sede, no galpão e nos dormitórios coletivos, certamente motivaram
forte tensão na vida erótica dos peões
e gaúchos heterossexuais, raízes das conhecidas práticas
zoofílicas, motivo de poesias tradicionalistas cantadas comumente, é
lógico, quando as prendas não estão presentes. Não deixa de ser
interessante que o amor carnal do peão por sua égua
arranque sorrisos simpáticos e cúmplices, enquanto que o abraço do
gaúcho, alegre ou triste, ao seu companheiro de faena, luta e
tristeza cause arrepios de horror aos muchachos nativistas!
O
desespero dos tradicionalistas com a eventualidade de que o gaúcho
histórico fosse, ainda que minoritariamente, homossexual, ou
tivesse, eventualmente, comportamentos homoeróticos, deve-se em
parte à falsa associação necessária da homossexualidade
masculina a comportamentos femininos. A feminização é apenas uma,
e talvez nem mesmo a mais significativa, entre as múltiplas formas
de vivência da homossexualidade masculina. Em muitos países, a
expressão da homossexualidade dá-se, precisamente, através da
ênfase dos atributos físicos e psíquicos masculinos.
Uma
das muitas qualidades do belo filme de Ang Lee, "O Segredo de
Brokeback Mountain", de 2005, é precisamente apresentar o
longo, tenso e dramático relacionamento afetivo e sexual de dois
peões estadunidenses, no contexto da integridade plena dos atributos
e comportamentos tidos como normais à identidade masculina. Ou seja,
mostrar uma forma da expressão da homossexualidade masculina que
deixa muito pouco espaço aos preconceitos e caricaturas habituais
sobre o relacionamento homoerótico. Uma reconstituição que pode
nos sugerir, igualmente, comportamento dominante dos gaúchos
eventualmente homossexuais ou envolvidos em atos homoeróticos no
passado.
É
crível que o hipotético gaúcho homossexual vivesse ou reprimisse,
mais ou menos plenamente, suas orientações profundas, sem jamais
deixar de ser e de se comportar como o gaúcho que era. Ou seja,
continuaria sendo macho, mas tão extremamente macho, que, caso se
encontrasse no centro de Porto Alegre, em 2002, entraria no
entrevero, mesmo de mãos nuas e desmontado, nem que fosse para não
ter o desgosto de ver um grupo de barbados, de rebenques na mão,
fantasiados de gaúchos, se encostando um nos outros, cheios de
fricotes, para encontrarem a coragem que lhes faltava para surrar um
guasca solito e desmamado. Um ato, definitivamente, convenhamos, mui,
mas mui pouco macho!
Bibliografia
consultada:
CHAVES,
Antônio Gonçalves. Memórias Ecônomo-políticas sobre a
administração pública do Brasil. Porto Alegre: Companhia União de
Seguros Gerais, 1978.
DELLA
FLORA, Jussara Maria "Rosas na Coroa, Pranto na Vida: a história
silenciosa da Camponesa Oestina ítalo-catarinense". Passo
Fundo: PPGH UPF, 2005. [Dissertação de Mestrado.]
DREYS,
Nicolau. Notícias descritiva do Rio Grande do Sul. 4 ed. Porto
Alegre: Nova
Dimensão;
PUC, 1990.
MAESTRI,
Mário. O escravo no Rio Grande do Sul: trabalho, resistência e
sociedade. 3 ed. Revista e ampliada. Porto Alegre: EdiUFRGS, 2006.
MEDEIROS,
Laudelino T. "O peão de estância: um tipo de trabalhador
rural". Porto
Alegre:
Instituto de Estudos e Pesquisas Econômicas da UFRGS, 1967. [Edição
fotocopiada]
SÃO
LEOPOLDO, José Feliciano Fernandes Pinheiro, Visconde de. Anais da
Província de São Pedro. 5ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
SILVA,
Nery Luiz Auler da. Antigas fazendas: arquitetura rural do Planalto
Médio. Séc. XIX. Passo Fundo: Edição do Autor, 2003.
Artigo
escrito para a Revista Arquipélago. A
homofobia.
Porto Alegre: Instituto
Estadual
do Livro/Governo do Estado do RS, 2006.
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