ico,
carregado de dor e injustiça. Mostrando em forma de mito a dor de um povo sob a
sina do cativeiro, que no Brasil durou 3/4 da nossa história e deixou marcas
até hoje.
O escritor pelotense João Simões Lopes Neto (1865-1916) publicou uma versão em 1913, que ficaria famosa somente a partir de uma reedição feita em 1949 por Érico Veríssimo e outros escritores.
Como acontece com toda a lenda, quem a conta, o faz de um jeito. Carrega num trecho aqui, se esquece de outro ali, muda a garrafa, mas serve mesma bebida, sem mudar muito sua essência. Por isso eu contei do meu jeito, que foi mais ou menos assim:
Era uma vez um fazendeiro que morava no Sul do Brasil. Ele era rico, ignorante, violento, mas esnobe e arrogante. Vivia da exploração de trabalhadores, alguns livres e alguns escravizados. Era criador de cavalos. Gostava de apostar em corridas. Tinha um cavalo baio que era o seu xodó, de quem gostava até mais que do próprio filho, um Mauricinho que só gastava o dinheiro do pai na capital Porto Alegre, no Rio e até na França e tinha vergonha da grossura do pai, um semi-analfabeto. E odiava ver o velho com mais orgulho do cavalo baio do que dos seus diplomas.
Na fazenda haviam peões livres, peões cativos, uns plantadores e os criados da casa. A maioria era de homens, jovens, que se chamavam de "irmãos" ou "malungos". Havia um preto velho, que todos os pretos chamavam de "pai" e algumas senhoras, chamadas de "mães".
Um desses pretos cativos era um menino, muito novo e franzino, adquirido pelo fazendeiro numa das apostas em corridas de cavalo. Foi apartado da mãe, também cativa, que durante o pagamento da aposta implorou para que não levassem seu filho. Em vão. Eles nunca mais se viram. O garoto tinha nome de um santo português, sobrenome da família dos donos da sua avó, trazida da África num navio negreiro, a quem nem conheceu, mas o fazendeiro o chamava apenas de Negrinho, e assim ficou conhecido na fazenda.
Por ser pequeno e leve, o fazendeiro passou a usar Negrinho como "jóquei" do cavalo baio, num tino inteligente que o fez ganhar ainda mais dinheiro nas corridas. Nenhum peão da redondeza era páreo para o baio montado pelo menino.
Numa tarde de rodeio, porém, depois de ganhar muito dinheiro, numa das corridas, justo na qual o fazendeiro apostou bem alto, o cavalo baio, que mais uma vez iria vencer, parou de repente, como se tivesse se assustado com algo, talvez uma cobra, derrubando o Negrinho e deixando outros peões cruzarem a chegada na sua frente.
Enfurecido com o prejuízo, o fazendeiro covarde descontou no cativo. Mandou o capataz dar-lhe uma surra bem dada de relho. Depois amarrou a mão do menino numa corda que na outra ponta prendia-o ao pescoço do cavalo, obrigando-os a passarem os dias e noites unidos. Negrinho, então, não mais dormia debaixo da escada, como os criados da Casa-Grande, nem na senzala, como seus demais companheiros. Tinha que dormir no campo, no chão gelado ou no lombo do baio, ao relento.
Certa noite, muito cansado, o menino dormiu profundamente e nem percebeu que o nó que o atava ao cavalo se desprendeu. O baio, solto, partiu em disparada, sumiu, se escafedeu, junto com o resto da cavalhada.
O fazendeiro, que já era carrancudo e estava furioso por causa do prejuízo da última aposta, ficou ainda mais brabo. De relho na mão, disse ao Negrinho que ele deveria encontrar os cavalos, sobretudo o baio, ou pagaria com a vida depois da pior surra que ele jamais sonhara.
Os senhores brancos eram especialistas nisso de causar dor. Palmatória, tronco, chicote de três pontas, ferro em brasa, máscara de flandres, pau-de-arara, torniquete na cabeça, cadeira do dragão, fio elétrico desencapado, tiro no pé ou na mão, apagar o cigarro na pele, arrancar ou enfiar alfinetes embaixo das unhas, desaparecimento, exílio, chacina, salário mínimo, tapão no rosto, telefone nos ouvidos, expulsar do shopping, olhar de desprezo, desemprego, fome, achaques, blitz, "vai pra parede"..., o menino bem sabia do que os opressores eram capazes.
Em desespero, o menino então rogou pela ajuda de uma protetora a quem as mães pretas costumavam rezar nas horas de sufoco. Algumas chamavam-na de Iara, outras de Iansã, Iemanjá, Odoiá, Janaína ou Maria. Ela tinha muitos nomes. Diziam que era mãe de deuses. Ou de um deus, que apanhou também e sangrou em seus braços. O menino lembrou de sua mãe preta. E se essa protetora dos pretos já foi mãe, havia de socorrê-lo...
Na noite escura, saiu o garoto com uma vela em busca dos cavalos. Cada pingo da vela que caia no campo acendia uma luz, fazendo um rastro iluminado que não o deixou se perder. Depois de muito caminhar, ele encontrou os cavalos, inclusive o baio. Sentiu um peso gigante saindo de suas costas. Montou no baio e conduziu toda a cavalhada pra fazenda, seguindo o rastro iluminado, voltando um pouco antes do sol nascer.
Acontece que o filho do fazendeiro não gostou de ver de volta o maldito cavalo baio, de quem tinha ciúmes. Aproveitou-se que o menino foi preparar o milho para os animais e espantou novamente o cavalo, somente aquele, o baio, xodó de seu pai. Quando Negrinho chamou o fazendeiro para mostrar que havia realizado a tarefa, o homem deu falta do cavalo e explodiu de raiva: "Seu inútil, inútil. Você vai ver"!
Negrinho apanhou muito, por horas, até seu carrasco não aguentar mais bater. Quando parou de gritar e de se mexer, o fazendeiro jogou seu corpo ensanguentado num enorme formigueiro, para que as formigas o despedaçassem.
Anoiteceu e um silêncio terrível tomou conta da fazenda. Todos os cativos choravam, mas ninguém ousava fazer qualquer comentário. O batuque estava proibido. Quando amanheceu, o fazendeiro voltou ao formigueiro para ver se as formigas haviam feito o "serviço". Mas, para sua surpresa, Negrinho estava vivo, sem um arranhão sequer, montado no cavalo baio e ao lado da sua protetora celeste.
Diziam os antigos que lá no Sul do Brasil que, a partir de então, toda vez que alguém perdia algo importante e o quisesse de volta, bastava acender uma vela, colocá-la ao lado de um formigueiro e pedir ao Negrinho que o encontrasse e trouxesse.
Imagens do Negrinho do Pastoreio estão hoje enfeitando a sede do governo do Rio Grande do Sul, o Palácio do Piratini, para que essa história seja lembrada e contada de geração em geração, até o fim dos tempos, para que todos saibam que a liberdade não tem preço.
O escritor pelotense João Simões Lopes Neto (1865-1916) publicou uma versão em 1913, que ficaria famosa somente a partir de uma reedição feita em 1949 por Érico Veríssimo e outros escritores.
Como acontece com toda a lenda, quem a conta, o faz de um jeito. Carrega num trecho aqui, se esquece de outro ali, muda a garrafa, mas serve mesma bebida, sem mudar muito sua essência. Por isso eu contei do meu jeito, que foi mais ou menos assim:
Era uma vez um fazendeiro que morava no Sul do Brasil. Ele era rico, ignorante, violento, mas esnobe e arrogante. Vivia da exploração de trabalhadores, alguns livres e alguns escravizados. Era criador de cavalos. Gostava de apostar em corridas. Tinha um cavalo baio que era o seu xodó, de quem gostava até mais que do próprio filho, um Mauricinho que só gastava o dinheiro do pai na capital Porto Alegre, no Rio e até na França e tinha vergonha da grossura do pai, um semi-analfabeto. E odiava ver o velho com mais orgulho do cavalo baio do que dos seus diplomas.
Na fazenda haviam peões livres, peões cativos, uns plantadores e os criados da casa. A maioria era de homens, jovens, que se chamavam de "irmãos" ou "malungos". Havia um preto velho, que todos os pretos chamavam de "pai" e algumas senhoras, chamadas de "mães".
Um desses pretos cativos era um menino, muito novo e franzino, adquirido pelo fazendeiro numa das apostas em corridas de cavalo. Foi apartado da mãe, também cativa, que durante o pagamento da aposta implorou para que não levassem seu filho. Em vão. Eles nunca mais se viram. O garoto tinha nome de um santo português, sobrenome da família dos donos da sua avó, trazida da África num navio negreiro, a quem nem conheceu, mas o fazendeiro o chamava apenas de Negrinho, e assim ficou conhecido na fazenda.
Por ser pequeno e leve, o fazendeiro passou a usar Negrinho como "jóquei" do cavalo baio, num tino inteligente que o fez ganhar ainda mais dinheiro nas corridas. Nenhum peão da redondeza era páreo para o baio montado pelo menino.
Numa tarde de rodeio, porém, depois de ganhar muito dinheiro, numa das corridas, justo na qual o fazendeiro apostou bem alto, o cavalo baio, que mais uma vez iria vencer, parou de repente, como se tivesse se assustado com algo, talvez uma cobra, derrubando o Negrinho e deixando outros peões cruzarem a chegada na sua frente.
Enfurecido com o prejuízo, o fazendeiro covarde descontou no cativo. Mandou o capataz dar-lhe uma surra bem dada de relho. Depois amarrou a mão do menino numa corda que na outra ponta prendia-o ao pescoço do cavalo, obrigando-os a passarem os dias e noites unidos. Negrinho, então, não mais dormia debaixo da escada, como os criados da Casa-Grande, nem na senzala, como seus demais companheiros. Tinha que dormir no campo, no chão gelado ou no lombo do baio, ao relento.
Certa noite, muito cansado, o menino dormiu profundamente e nem percebeu que o nó que o atava ao cavalo se desprendeu. O baio, solto, partiu em disparada, sumiu, se escafedeu, junto com o resto da cavalhada.
O fazendeiro, que já era carrancudo e estava furioso por causa do prejuízo da última aposta, ficou ainda mais brabo. De relho na mão, disse ao Negrinho que ele deveria encontrar os cavalos, sobretudo o baio, ou pagaria com a vida depois da pior surra que ele jamais sonhara.
Os senhores brancos eram especialistas nisso de causar dor. Palmatória, tronco, chicote de três pontas, ferro em brasa, máscara de flandres, pau-de-arara, torniquete na cabeça, cadeira do dragão, fio elétrico desencapado, tiro no pé ou na mão, apagar o cigarro na pele, arrancar ou enfiar alfinetes embaixo das unhas, desaparecimento, exílio, chacina, salário mínimo, tapão no rosto, telefone nos ouvidos, expulsar do shopping, olhar de desprezo, desemprego, fome, achaques, blitz, "vai pra parede"..., o menino bem sabia do que os opressores eram capazes.
Em desespero, o menino então rogou pela ajuda de uma protetora a quem as mães pretas costumavam rezar nas horas de sufoco. Algumas chamavam-na de Iara, outras de Iansã, Iemanjá, Odoiá, Janaína ou Maria. Ela tinha muitos nomes. Diziam que era mãe de deuses. Ou de um deus, que apanhou também e sangrou em seus braços. O menino lembrou de sua mãe preta. E se essa protetora dos pretos já foi mãe, havia de socorrê-lo...
Na noite escura, saiu o garoto com uma vela em busca dos cavalos. Cada pingo da vela que caia no campo acendia uma luz, fazendo um rastro iluminado que não o deixou se perder. Depois de muito caminhar, ele encontrou os cavalos, inclusive o baio. Sentiu um peso gigante saindo de suas costas. Montou no baio e conduziu toda a cavalhada pra fazenda, seguindo o rastro iluminado, voltando um pouco antes do sol nascer.
Acontece que o filho do fazendeiro não gostou de ver de volta o maldito cavalo baio, de quem tinha ciúmes. Aproveitou-se que o menino foi preparar o milho para os animais e espantou novamente o cavalo, somente aquele, o baio, xodó de seu pai. Quando Negrinho chamou o fazendeiro para mostrar que havia realizado a tarefa, o homem deu falta do cavalo e explodiu de raiva: "Seu inútil, inútil. Você vai ver"!
Negrinho apanhou muito, por horas, até seu carrasco não aguentar mais bater. Quando parou de gritar e de se mexer, o fazendeiro jogou seu corpo ensanguentado num enorme formigueiro, para que as formigas o despedaçassem.
Anoiteceu e um silêncio terrível tomou conta da fazenda. Todos os cativos choravam, mas ninguém ousava fazer qualquer comentário. O batuque estava proibido. Quando amanheceu, o fazendeiro voltou ao formigueiro para ver se as formigas haviam feito o "serviço". Mas, para sua surpresa, Negrinho estava vivo, sem um arranhão sequer, montado no cavalo baio e ao lado da sua protetora celeste.
Diziam os antigos que lá no Sul do Brasil que, a partir de então, toda vez que alguém perdia algo importante e o quisesse de volta, bastava acender uma vela, colocá-la ao lado de um formigueiro e pedir ao Negrinho que o encontrasse e trouxesse.
Imagens do Negrinho do Pastoreio estão hoje enfeitando a sede do governo do Rio Grande do Sul, o Palácio do Piratini, para que essa história seja lembrada e contada de geração em geração, até o fim dos tempos, para que todos saibam que a liberdade não tem preço.
OBS: "Hemerson Ferreira:
Mas
ainda tomaremos esse palácio de inverno".
*Hemerson
Ferreira é Professor de história
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