http://diariogauche.blogspot.com/2011/09/maldicao-conservadora-e-invencao-do.html
Antes de entrar no tema que quero comentar,
chamo a atenção para o “Desfile Cívico-Militar do Vinte de Setembro”
(conforme consta da programação dos seus organizadores, os dirigentes do
MTG – Movimento Tradicionalista Gaúcho) que está se desenrolando hoje,
precisamente 20 de setembro de 2011.
Quero sublinhar a ênfase na expressão
“cívico-militar” dado pelo MTG, em pleno século 21. Me explico. Ninguém
desconhece a filiação positivista-comtiana dos republicanos brasileiros,
na segunda metade do século 19. No Rio Grande do Sul, onde a República
aconteceu depois de uma revolução cruenta que durou de 1893 a 1895, os
positivistas foram mais radicais e, por isso, mais exitosos do que no
resto do Brasil. Julio de Castilhos e os militantes do Partido
Republicano Rio-Grandense (PRR) modificaram completamente o cenário
político e social do estado mais meridional do País. No RS não houve a
chamada troca de placa: sai a Monarquia dos Bragança, entra a República
constitucional. Aqui, houve a mais completa e absoluta troca da elite no
poder. Saem os velhos estancieiros pecuaristas da Campanha, entra uma
composição de classes formada por uma pequena burguesia urbana, uma
classe média rural, profissionais liberais e colonos de origem europeia
da região serrana.
Os positivistas sulinos, fiéis aos
ensinamentos dogmáticos de Auguste Comte, propugnavam – como o mestre –
pela superação das fases pregressas da Humanidade. À fase militar-feudal
deve seguir-se a fase industrial da Humanidade. Ou seja, à fase militar
corresponderia a insurreição farroupilha de 1835-45 contra o Império do
Brasil, agora – com o advento republicano – estávamos, pois, na hora de
criar condições para o desenvolvimento e o progresso material que se
daria por um processo intensivo de industrialização manufatureira.
Vejam,
pois, que os tradicionalistas do século 21 continuam com os olhos fixos
num passado praticamente feudal, marcadamente militarista, embora não
tenhamos experimentado, de forma hegemônica e total, esse modo de
produção pré-capitalista no Brasil.
Um dos formuladores intelectuais do que
chamamos de ordem delirante do atraso – o pensamento tradicionalista da
estância – foi Ramiro Frota Barcellos. Na obra “Rio Grande, tradição e
cultura” (1915), o santiaguense é de uma clareza solar quanto aos
propósitos enfermiços do tradicionalismo estancieiro: “O que agora se
verifica, mercê do atual movimento tradicionalista, é a transposição
simbólica dos remanescentes dos ‘grupos locais’, com suas estâncias e
seus galpões para o coração das cidades. Transposição simbólica, mas que
fará sobreviver, na mais singular aculturação de todos os tempos, o Rio
Grande latifundiário e pecuarista”.
Qualquer semelhança com o enclave da
bombacha e da fumaça que anualmente acampa, no mês de Setembro, no
Parque da Harmonia, em plena área central de Porto Alegre, não é mera
coincidência. A “mais singular aculturação de todos os tempos”, como
premonitoriamente afirma Barcellos. Neste caso, “aculturação” é sinônimo
de regressismo e estagnação.
É sobre isso que eu quero comentar brevemente.
Quando estudantes em São Paulo, Júlio de
Castilhos e Assis Brasil chegaram a fundar um chamado “Clube 20 de
Setembro”, que promoveu estudos – com algumas publicações - sobre o
movimento farroupilha da primeira metade do século 19. Curiosamente,
Castilhos abandonou as pesquisas sobre a guerra civil que varreu o Rio
Grande por dez longos anos. Assis, em 1882, publicou a obra “História da
República Rio-Grandense”. Por algum motivo, carente de melhores
investigações, tanto os positivistas do PRR, quanto os liberais sulinos
não foram muito enfáticos no culto farrapo. Tal fenômeno veio a ocorrer
somente depois da Segunda Guerra, em Porto Alegre, no meio estudantil
secundarista urbano do Colégio Estadual Julio de Castilhos. Daí se
difundiu como rastilho de pólvora sob a forma dos onipresentes Centro de
Tradição Gaúcho – CTG, que são clubes de convivência social onde se
cultua o passado sob a forma fixa da mitologia farrapa, tendo como
matriz formal a estética e o ethos do latifúndio da pecuária extensiva
de exportação – subordinado à cadeia mercantil dos interesses
hegemônicos ingleses na América do Sul. Quando os tradicionalistas se
ufanam do pretensioso espírito autônomo e emancipado do chamado 'gaúcho' tout court,
se referem ao Império dos Bragança, mas esquecem a dependência
econômica e subordinação negocial estrita com os interesses ingleses,
via portos de escoamento no Prata (Montevideo e Buenos Aires).
[Das relevantes realizações modernizantes
do castilhismo-borgismo foram a estatização e incremento do porto de Rio
Grande, bem como a encampação das ferrovias controladas por capitais
europeus, de forma a dotar o estado de infraestrutura e fomentar o
desenvolvimento, sem depender do Rio ou do Prata.]
A grande data a comemorar no Rio Grande do
Sul, pelo lado do senso comum, é o 20 de Setembro, que marca o início da
insurreição farroupilha (é um equívoco chamá-la de “revolução”, uma vez
que os rebeldes foram derrotados pelo Império e não ocorreu nenhuma
modificação política, social ou econômica na província sulina depois de
1º de março de 1845, na chamada Paz de Ponche Verde). No entanto, se
houve revolução no sentido rigoroso e clássico do termo, esta
ocorreu a partir da promulgação da Constituição Rio-Grandense, e da
posse do governador (então, presidente do Estado) Julio de Castilhos, no
dia 14 de julho de 1891. Meses depois, os conservadores e
latifundiários alijados do poder, eternos aliados e sustentáculos da
Monarquia, deram início à luta armada contra os jovens que governavam o
Rio Grande (Castilhos tinha 30 anos quando assume a presidência do
estado). A partir da revolução cruenta, se inicia um processo de grandes
modificações e modernizações no RS. Em 1902, já com Borges de Medeiros
no poder, depois da morte precoce de Castilhos, o estado passou a
tributar com impostos progressivos as terras privadas, bem como reaver
dos estancieiros as imensas glebas públicas apropriadas ilegalmente
durante todo o século 19.
A hegemonia política do
castilhismo-borgismo perdura até a década de 1930. Getúlio Vargas foi
presidente do estado de 1928 a 1930, quando sai para o Catete, e já
deixa um governo mais conciliador com os conservadores da Campanha.
É intrigante, pois, que a apropriação do
imaginário social tenha se dado pelo lado dos conservadores, através do
simbolismo inventado do 20 de Setembro, e não pelas forças burguesas,
progressistas e renovadoras do Rio Grande do Sul, que seria pelo 14 de
Julho.
Eric
Hobsbawn e Terence Ranger que estudaram o fenômeno da chamada “invenção
das tradições” suspeitam que quando ocorrem mudanças sociais muito
bruscas e profundas, produzindo novos padrões com os quais essas
tradições são incompatíveis, inventam-se novas tradições e novos
imaginários de identidade social e cultural. Para os dois autores
britânicos, a teoria da modernização pode sim conceber que as mudanças
operadas pela infraestrutura da sociedade demandem tradições inventadas
no plano da superestrutura.
Neste sentido, a revolução burguesa
positivista-castilhista de inspiração saint-simoniana, introdutora do
Estado-Providência, mobilizou somente as instâncias da infraestrutura
(base material e econômica), deixando uma vasta lacuna, um boqueirão
ideológico, diríamos, na esfera da superestrutura.
Assim, teria restado um formidável vácuo em
distintos setores da vida social e no espírito dos indivíduos, como nas
artes, no pensamento político, no Direito, na identidade, nas
subjetividades individuais e de grupos, na cultura e no imaginário como
um todo. O homem é, antes de tudo, um animal simbólico, e este domínio
da razão e da cultura foi deixado vago, motivado, talvez, pelas duras
urgências da vida real, mas também – suspeito eu – pelo próprio
autoritarismo do poder estendido do castilhismo-borgismo.
O tradicionalismo seria, assim, um
desagravo mítico-ideológico dos derrotados de 1893/95, os mesmos
derrotados de Ponche Verde. Uma vingança de classe – a do latifúndio
subalterno e associado – contra a modernização burguesa do positivismo
pampeiro, seria isso? Uma maldição contra o futuro do Rio Grande? “Vocês
estarão condenados a viver no passado, em meio à fumaça e o cheiro de
esterco, festejando derrotas, e considerando heróico, cavalgando durezas
e incomodidades, e considerando genuíno, fruindo uma arte primária e
mambembe, e considerando autêntico, cultuando velhos ressentimentos e
considerando lúcido, ignorando o rico mosaico cultural da província e
considerando o tradicionalismo de matriz latifundiária como a síntese de
tudo. Vocês são os gaúchos, velhos vagabundos redimidos, são os heróis
de um passado que nunca existiu” – foi a sentença de fogo dos que
trouxeram o tradicionalismo como vanguarda do atraso no pensamento
guasca.
Um comentário:
Sou um gaúcho mais por forças das circunstâncias do que por ironia do destino. Por imposições de minha profissão tive que aqui construir minha família e educar meus filhos. Desde que conheci gaúchos e a cultura do sul ouço falar no MTG, os que são prós, e os que são contra. Sou a favor de todo empenho em preservar valores e culturas com conhecimento, racionalidade, verdade. Vemos que alguns setores e participantes do MTG e os que estão na ponta das linhas, os CTG, estão tornando o Tradicionalismo verdadeira forma de viver, distinguindo-se no seu local de trabalho, delimitando os membros de família e amigos, os sim e não tradicionalista, assemelhando-se a uma irmandade filosófica, seita religiosa, movimento messiânico onde a salvação do RS será sua separação do Brasil. Posso ter exagerado, mas creio que esse comportamento deveria ser analisado como mais um fenômeno mundial, dos tempos atuais da industrialização, automação, onde as pessoas rompem bruscamente sua forma de vida interiorana, rural e parte para o meio urbano como aconteceu com "os oito". Movimentos que promovem a experimentação das lides do campo estão ocorrendo em todo o mundo, em todos grandes centros urbanos. É uma volta idílica aos encantos do passado dos nossos avós, ancestrais, como a vida deles foi dura, mas como foram felizes... O MTG necessita de direcionamento, apoio, moderação. Anos atrás as elites europeizadas de Porto Alegre desdenharam daqueles oito baguais de bombacha, dos vencidos a poucas décadas pelos urbanos, não acreditaram que eles pudessem chegar onde chegaram.
Fergon
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