O Rio Grande do Sul porta uma riqueza cultural única no Brasil,
que resulta da contribuição de múltiplas nacionalidades e etnias -
algumas autóctones, como as diversas nações etnolinguísticas que tivemos
e temos (sem jamais esquecer o holocausto do bravo povo Charrua, que
preferiu o sacrifício da vida a se deixar evangelizar pelos jesuítas);
outras, exóticas, como europeus, asiáticos e africanos. Temos
comunidades representativas de todos os continentes, que aqui se
expressam, se miscigenam, e de alguma maneira contribuem para o nosso
vasto painel cultural chamado Rio Grande do Sul.
Todavia, somos conhecidos como "gaúchos". Ou melhor, o pensamento
político hegemônico achou cômodo e funcional adequar um velho vocábulo
marginal e desprestigiado - o gaúcho - para identificar de forma
grosseira e imperfeita o tipo humano mais meridional do Brasil. Logo,
mesmo a muque, somos gaúchos. Um gentílico reciclado e remodelado para
representar o povo sulino, portanto, um locativo arbitrário e
insuficiente - reducionista e ficcional.
O
significado das palavras é histórico, porque muda conforme as
ondulações do tempo e das vontades. Camões (ao lado) dizia que mudam-se
os tempos e mudam-se as vontades. Gaúcho já foi o tipo marginal, uma
espécie de andarilho em busca de um porto seguro, e que desconhecia as
normas sociais estabelecidas. É, inclusive, uma expressão multinacional,
comum à região platino-pampeana. "Gauchos" (pronuncia-se gáu-tchos) são os uruguaios e grande parte dos argentinos.
Assim, se a imprecisão avulta, cresce também a necessidade de emprestar
mais atributos identitários ao gentílico, a fim de definir os contornos
de uma personalidade singular e exclusiva.
Que tal trazer do passado recortes plásticos para dar-lhe espessura e
densidade histórica? A guerra civil de 1835-1845 contra o Império da
família Bragança pode ser uma boa ideia. Tem muitos ingredientes épicos,
tintas republicanas, espírito indômito, traços libertários, uma
subjetividade não contaminada pela cultura etnocêntrica, etcetera, que
podem formar um nexo neste constructo mítico que se está moldando meio
às cegas.
Como em toda mitologia, foram sendo costurados elementos portadores de
significado e que representam a realidade. É a bricolagem de Claude
Lévi-Strauss. Uma vasta colcha de retalhos do real, improvisados de
forma a combinar um todo que guarda coerência com o passado, mesmo que
parte deles seja ficção, parte metalinguagem, parte historiografia,
parte contingência, parte realidade transfigurada, parte ideologia,
parte má consciência, parte fetichismo, parte gabolice, e por aí vai. O
gaúcho, portanto, é uma obra em aberto, e por isso, em disputa. Uma obra
que flutua, uma "ideia feita" (Flaubert) e refeita constantemente pelos
seus sustentadores (ou mesmo adversários, por que não?).
Brincando um pouco, é possível dizer que o gaúcho (à moda de Michel Foucault no prefácio de As palavras e as coisas, onde cita Jorge Luis Borges) está catalogado como “uma certa enciclopédia chinesa onde está escrito que os animais [os gaúchos] se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam
como loucos, j) inumeráveis,
k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) etcetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas”.
Quer dizer, cabe qualquer disparate para identificar esse "tipo ideal" (Weber) do bloco no poder sul-rio-grandense.
Semanas atrás, uma empresa midiática familial sulina, de grande
influência no poder e no senso comum local, achou por bem em consultar
os seus leitores/consumidores sobre quais seriam os principais
personagens históricos do Estado, como se o senso comum dominasse de
forma segura esse universo historiográfico e a partir disso pudesse
fazer a classificação do panteão pretendido pela empresa de
entretenimento. Por óbvio, havia uma cartela de nomes passíveis de
representarem a farsa midiática, quase todos de ficção, alguns de ficção
romanesca mesmo, como uma certa namorada do mercenário italiano
Giuseppe Garibaldi, que hoje está entronizada como figura fundante da
nossa "pequena pátria" (Comte).
Já se vê, pois, que há permissão para que qualquer indivíduo ou grupo
incida nessa bricolagem mítica que é o constructo do gaúcho. É evidente
que o pensamento hegemônico tira vantagem nessa disputa, afinal, detém a
quase absoluta totalidade das mídias conhecidas, o Parlamento, o
Executivo, o Judiciário, as Universidades, a publicidade, e uma
formidável capilaridade no meio social, através da escola formal,
clubes, associações, igrejas, entidades patronais, e mesmo sindicatos de
empregados, etc.
Mas
tem um componente neurótico nessa opção pelo tradicionalismo. Sim,
porque entre dois tradicionalismos, escolheu-se o mais rústico e
rasteiro. A que tradicionalismo nos referimos? Ora, o tradicionalismo
vencedor é aquele filiado à corrente farroupilha de Bento Gonçalves da
Silva, a tradição hegemonizada, portanto subalterna, é a de Julio Prates
de Castilhos (ao lado), o responsável por um movimento político burguês
que ainda no século 19 projetou o Rio Grande do Sul no século 20.
Hoje, predomina um ethos que corresponde à tradição imposta por um
antigo ladrão de equínos e bovinos, Bento Gonçalves da Silva. São esses
traços psicossociais que estão no poder no Estado, agora. A tradição
representada pelo burguês modernizador, revolucionário (no estrito senso
do vocábulo), austero e incorruptível, que foi Castilhos, está
subordinada ao pragmatismo mais rebaixado e deletério. Informe-se que
Julio de Castilhos preferiu as dificuldades materiais e contingentes do
que advogar para sobreviver, depois que foi alijado do poder. Alegava
que não poderia - moralmente - sequer peticionar a um magistrado que
fora nomeado por ele quando chefe do Executivo estadual.
Esse modelo político-moral está arquivado no Rio Grande, em favor de um
padrão inspirado no abigeato e na apropriação indébita do público e do
privado.
Se o Rio Grande chegou primeiro ao século 20 (antes mesmo do resto do
País), hoje, sai por último do mesmo século. O Brasil, aos trancos e
barrancos, e de forma parcial, já chegou ao século 21, mas o RS se
arrasta e se enxovalha no pântano a que foi conduzido pela hipertrofia
do pragmatismo maragato, cuja matriz político-ideológica foi forjada
durante o século 19, depois da guerra civil de 1835, e se estendeu até
1891, no dia 14 de julho quando é proclamada a Constituição castilhista
que induz a modernização burguesa e a promoção geral e complexa da
província fronteiriça sulina.
O
castilhismo-borgismo promoveu uma autêntica revolução burguesa no
Estado. Algo que o próprio Brasil experimentaria somente depois de 1930,
com a chegada de Getúlio Vargas (ao lado) ao poder. Se nós tivemos uma
revolução burguesa do tipo clássica, cruenta, que modificou radicalmente
o poder regional, modernizando-o e aportando valores republicanos,
ainda que não-democráticos, o Brasil não a teve. A modernização do País e
a institucionalização do Estado, bem como o processo de
industrialização, foram conquistas, não da burguesia, mas da iniciativa
do próprio Vargas - forjado e projetado no sistema castilhista
sul-rio-grandense.
Assim, festejamos o 20 de Setembro, por um capricho rançoso dos
perdedores de 1893 (e que estiveram no poder durante toda a segunda
metade do século 19 e só souberam se apropriar de terras devolutas do
Estado monárquico, especialmente na região da Campanha).
Por que não festejamos o 14 de Julho de 1891? Justo a data da
proclamação da Constituição republicana. Esta data é o dia fundante da
verdadeira república rio-grandense. Por que festejamos a outra, a
república farrapa, que admitia o escravagismo e tolerava todas as
religiões, desde que fosse a católica romana? Uma falsa república
fundada por falsos líderes, os mesmos que assinam o vergonhoso pacto de
Ponche Verde com o Império dos Bragança, e de quebra recebem uma polpuda
"indenização". É caso único no mundo, o vencido receber indenização do
vencedor. A rigor, o Império comprou a "rebeldia" dos farroupilhas, e
estes se venderam pelo vil metal.
Artigo de Cristóvão Feil publicado neste blog DG em 20 de setembro de 2009. Estamos republicando-o a pedido de leitores.
Foto do alto:
no dia 2 de janeiro de 2009, um anônimo montou em pelo sobre o belo
monumento positivista que homenageia Júlio Prates de Castilhos, na Praça
da Matriz, centro de Porto Alegre. O sujeito, por acaso nascido em Bagé
(RS) principal cidadela maragata na revolução de 1893, foi preso e não
soube explicar o gesto e a intenção. Foto de Fernando Gomes/ZH.
2 comentários:
Realmente lamentável a mensagem principal deste texto (deprezo pelo gauchismo farrapo-maragato), do mesmo nível do que é escrito por certa gama de historiadores marxistas-culturais que proliferam, desgraçadamente, por aí. Certos textos e teses são nada mais do que manifestos de traição ao Rio Grande, que muitas vezes partem de comunistas, que desprezam a epopéia farrapa contra o império brazileiro, a cruzada maragata contra a ditadura positivista-castilhista e, igualmente, a rebelião de 23 contra o continuismo borgista, e ao mesmo tempo, paradoxalmente, louvam e defendem o que houve (e há) de mais assassino e genocida na história da humanidade: o socialismo marxista. Infelizmente, não prosperou o projeto separatista (que, por mais que negue a corrente lusitana de historiografia, em contraponto a corrente platina, de fato existiu) pela qual tombaram os bravos peôes farrapos-maragatos, aqueles heróis que sujaram suas nobres facas com sangue de pescoço imperial-pica-pau-chimango, no passado. Fodam-se malditas teses marxistas que rebaixam a valentia dos antepassados, não passam de frescura permeada de sentimentalismo barato! O importante é que muito sangue imperial-chimango foi derramado no passado com as lanças e facas dos ancestrais farrapos/maragatos/libertadores, e isso, a chimangada/comunistada vai ter que engolir pra sempre! Sim, o RS optou pelo pior, o chimanguismo e o marxismo-cultural, mas o lenço vermelho, um dia, certamente, voltará. Mais altivo do que nunca.
Realmente lamentável a mensagem principal deste texto (deprezo pelo gauchismo farrapo-maragato), do mesmo nível do que é escrito por certa gama de historiadores marxistas-culturais que proliferam, desgraçadamente, por aí. Certos textos e teses são nada mais do que manifestos de traição ao Rio Grande, que muitas vezes partem de comunistas, que desprezam a epopéia farrapa contra o império brazileiro, a cruzada maragata contra a ditadura positivista-castilhista e, igualmente, a rebelião de 23 contra o continuismo borgista, e ao mesmo tempo, paradoxalmente, louvam e defendem o que houve (e há) de mais assassino e genocida na história da humanidade: o socialismo marxista. Infelizmente, não prosperou o projeto separatista (que, por mais que negue a corrente lusitana de historiografia, em contraponto a corrente platina, de fato existiu) pela qual tombaram os bravos peôes farrapos-maragatos, aqueles heróis que sujaram suas nobres facas com sangue de pescoço imperial-pica-pau-chimango, no passado. Fodam-se malditas teses marxistas que rebaixam a valentia dos antepassados, não passam de frescura permeada de sentimentalismo barato! O importante é que muito sangue imperial-chimango foi derramado no passado com as lanças e facas dos ancestrais farrapos/maragatos/libertadores, e isso, a chimangada/comunistada vai ter que engolir pra sempre! Sim, o RS optou pelo pior, o chimanguismo e o marxismo-cultural, mas o lenço vermelho, um dia, certamente, voltará. Mais altivo do que nunca.
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