Mário
Maestri1
REVISTA
DE HISTÓRIA
[25];
João Pessoa, jul./ dez. 2011.61
1863-1864:
Senzalas sem Paz no Meridião Rio-Grandense Em
1863, o movimento emancipacionista fortalecia-se no Brasil. Após
treze anos da interrupção do tráfico transatlântico, a população
escravizada, crioula ou ladinizada,
começava a contar com apoios entre a população livre na luta pela
libertação. Havia muitos anos, a abolição realizara-se no Uruguai
e na Argentina2.
Nesse ano, a guerra de Secessão nos USA enfuriava, sinalizando a
destruição do cativeiro na grande nação. A escravidão tornava-se
excrescência jurídica nas Américas e a liberdade, direito civil a
ser conquistado pela população feitorizada do Brasil.
No
novo contexto, houve clara evolução das revoltas servis no Rio
Grande do Sul, que não passaram mais a apontar apenas obsessivamente
para a fuga para os matos ou para as fronteiras3.
Agora, os cativos organizavam-se para reivindicar a emancipação, de
posição de força. Projetos que pressupunham esforço
organizacional e nível mínimo de elaboração política. A crise
política no Prata [1864-1870] deu também um novo sentido à busca
das nações do Prata. Houve maior envolvimento de homens libertos e
homens livres nesses sucessos e aumentou o medo das autoridades de
que as notícias sobre eles se disseminassem na escravaria.
Insubordinação
de Escravos
Em
princípios de janeiro de 1863, informado que nas “fazendas de
agricultura” do cirurgião Antônio José de Moraes, no termo de
Taquari, região a uns cem quilômetros a noroeste de Porto Alegre,
apareceram “indícios de insubordinação de escravos”, o
delegado de Polícia enviou, no dia 8, o “inspetor de quarteirão”,
com “alguns praças”. O destacamento prendeu dois cativos tidos
por “aliciadores de seus parceiros”, parecendo “entrarem as
fazendas no curso regular de seus trabalhos”.
Muito
logo, como “alguns pretos procuraram embargar a passagem da
escolta” “reforçada”, o delegado de Polícia enviou “força
do Corpo Policial” e o cirurgião Moraes, a quem “os escravos
prestando obediência, pediram perdão”. Os dois acusados foram
enviados para Porto Alegre para serem “interrogados” e sete
cativos homiziaram-se no mato. Em resposta às informações sobre os
fatos, o conselheiro João Vieira Cansanção de Sinimbu, ministro e
secretário de Estado dos Negócios da Justiça, na Corte, recomendou
“terminantes providencia para a punição” daquela
“insubordinação de escravos”4.
Em 25 de fevereiro de 1863, o presidente da Província enviou ao
chefe de Polícia de Pelotas correspondência reservada sobre “as
seduções empregadas pelo preto liberto Sebastião Maria”,
suspeito de conspirar para a “insurreição de grande número de
escravos” em Pelotas, o grande polo escravista sulino5.
A
presidência da Província recomendava que se procedesse, com o
“menor estrépito que for possível”, “incessante vigilância a
fim de prevenir os efeitos que porventura tivessem provocado” a
ação do liberto. A presidência da Província perguntava sobre a
repercussão da agitação e, sobretudo, se Sebastião “obrava”
“por movimento próprio” ou fosse, eventualmente, “instrumento
de algum plano tenebroso” de “algum agente ou súdito” da
Inglaterra. O liberto seria interrogado e levado, “com cautela e
segurança para a cadeia da cidade de Rio Grande, a bordo de “algum
dos vapores de guerra da flotilha” que transportavam tropas para a
guarnição de Pelotas e Rio Grande. Determinava igualmente que o
liberto recebesse “nota de culpa” por “crime de insurreição”
e que fosse mantido na cadeia sem “comunicação com escravos, ou
qualquer liberto que não inspire inteira confiança”6.
A referência e o temor à interferência da Inglaterra era devido à
questão Christie [1862-1865], então em curso7.
Reclamando
a Liberdade
Meses
mais tarde, em agosto de 1863, ocorreria tentativa insurrecional, no
segundo distrito da Aldeia dos Anjos [Gravataí], nas proximidades de
Porto Alegre. A paróquia de Nossa Senhora dos Anjos fora fundada
para abrigar guaranis missioneiros trazidos das Missões, quando do
recuo luso-brasileiro para Rio Pardo, após a Guerra Guaranítica
[1753-1756]8.
Na segunda década do século 19, a população nativa já desertara
em grande parte a aglomeração9.
Informado
de movimentos conspirativos entre a escravaria de “diversas
fazendas da região”, o subdelegado de Polícia do distrito
comunicou o fato ao chefe de Polícia, que partiu na noite de 25 de
agosto, para a região, à frente de uma “escolta do corpo
policial”. Ao chegar ao local, encontrou já em “diligências”,
“praças da Guarda Nacional”, convocadas pelo comandante do corpo
do distrito.
No
dia 26, chegaram dezessete “escravos presos” e, cinco outros, no
dia seguinte. Após interrogatório, acertou-se que, desde maio, os
cativos da fazenda de Francisco Maciel “aliciavam” cativos para
“levantarem-se contra os senhores, tomarem-lhes as armas e o
dinheiro, e reclamarem depois sua liberdade, exigindo pela força, se
lhe a não dessem”. Os cativos da fazenda “evadiram-se logo que
perceberam a proximidade” das forças policiais. Os conspiradores
contavam com apoio nas “fazendas vizinhas” e enviaram
“emissários” para o Pinhal, Passo Grande e Sapucaia10.
O
movimento eclodiria na quarta-feira, 26 de agosto – um dia após a
repressão ao movimento. Os cativos planejavam “reunirem-se no
Passo do Butiá”, para “alistaremse”. Após acamparem no campo
do Chará, atacariam a povoação da Aldeia dos Anjos, no dia 30,
domingo. De lá, partiriam para o Passo Grande, “onde reunidos
todos”, marchariam para Porto Alegre. Um chefe do movimento, que se
entregara no dia 28, e outros prisioneiros, confirmaram o plano. O
delegado conclui seu relatório, escrito em 29 de agosto, assegurando
que a “tranquilidade” fora restabelecida. Os cabeças do
movimento, já presos, seriam processados. Os menos envolvidos, foram
imediatamente “castigados corporalmente”, com a licença dos
proprietários11.
A
conspiração era movimento singular, nos objetivos, amplitude e
organização. No mínimo durante quatro meses, cativos da fazenda de
Francisco Maciel aliciaram companheiros das propriedades vizinhas e
em outros pontos do distrito. Eles concentrariam as forças nos dias
26, 27, 28 e 29 de agosto e, no domingo, atacariam a Aldeia dos Anjos
e, após nova reunião no Passo Grande, partiriam para Porto Alegre.
Esperavam, iniciado o movimento, receber novas adesões. Pretendiam
reivindicar a liberdade de uma posição de força.
A
Conspiração de Taquari
Em
novembro de 1864, descobriu-se plano de cativos para saquear a vila
de Taquari e, após sequestrar mulheres, fugir para o Estado
Oriental, onde enfuriava a guerra civil e receberiam certamente a
proteção do Partido Blanco. Informada em 19 de novembro, a
presidência da Província enviara na manhã seguinte, para aquela
vila, “vapor”, pelo rio Taquari, afluente da margem esquerda do
rio Jacuí, com um oficial, dez soldados, “armamentos e munição”
e o juiz de Direito interino da 2ª Vara Criminal, José Alves de
Azevedo Magalhães, para investigações. Este último informara que
o plano da “insurreição” seria “insensato e que nem poderia
ser levado a sério, sendo o susto dos habitantes mais imaginário do
que real”. Segundo o delegado de Polícia, as fazendas do distrito
teriam mais de oitocentos cativos. Não fora falso
alarme.
Em ofício ao presidente da Província, de 20 de novembro, Azevedo
Magalhães declarava que, em interrogatórios feitos após a
descoberta da conspiração, soubera-se que os cativos “Boaventura,
Domingos, Carlos, Bento, João e Joaquim, aliciados pelo liberto João
Marçal”, convidaram “diversos parceiros” para se reunirem, em
um dia não marcado, no cemitério, para “dali marcharem” sobre a
vila e, após apoderarem-se de armas e dinheiro, “retirarem-se para
o Estado Oriental. Uma cativa, de propriedade de Francisco Caminha,
soubera do plano e o denunciara. Falava-se na região que chegara do
Uruguai, onde estivera “refugiado”, “um preto irmão de dois
escravos implicados”. Nos interrogatórios, o cativo Joaquim acusou
dois destacados cidadãos da vila como responsáveis pelos fatos12.
Em
ofício de 25 de novembro, o delegado de Polícia da região
comunicava que os cativos Joaquim e Domingos, de Antônio José de
Oliveira; a escrava Ventura, de Damásia Joaquina da Silva; Antônio,
de Cândido d’Abril; Bento, de Manuel da Silva Pinto, e Carlos, de
José Mendes da Silva foram denunciados como implicados em crime de
tentativa de insurreição. Como hábito, os menos comprometidos
foram apenas
açoitados,
com a anuência dos proprietários13.
Tratava-se de plano insurrecional para fugir para o Estado Oriental,
onde as tropas imperiais haviam ingressado em setembro, agravando a
crise e ensejando, a seguir, o grande conflito de 1865-1870.
Em
dezembro de 1864, em Pelotas, o bacharel João Marcelino de Sousa
Gonzaga, presidente da Província [2.5.1864-20.06.1865] relatara ao
ministro da Justiça, na Corte, a descoberta de plano insurrecional
de cativos em Porto Alegre. Apesar de não dispor ainda de dados
precisos, descria da notícia, nascida do “espírito público da
província”, impressionado “com a gravidade da situação” no
Uruguai. Propôs igualmente que Porto Alegre teria “muita população
livre e poucos escravos” e pedia licença para proceder contra
“libertos”, entre eles ex-praças do Exército, possíveis
causadores dos “receios de insurreição”14.
Nos fatos, a população servil da capital não era diminuta, como
proposto. Mesmo exportando cativos para o Centro-Sul, 23% da
população porto-alegrense conhecia o cativeiro – sem contar os
libertos e negros livres15.
Os
Orientais e a Grande Conspiração de 1865
Mais
do que vãs temores agitavam a província sulina em 1865. Em seu
Relatório sobre sua administração do Rio Grande, João Marcelino
escreveria: “No princípio do corrente ano [1865], houve um
estremecimento geral proveniente de suspeitas da existência de um
plano de insurreição servil”. Novamente, para ele, não seria
“plano
combinado”, mesmo reconhecendo a agitação em “alguns termos da
Província”. Na ocasião, repreendeu as “autoridades locais”
que acionaram “ostensivamente” a Polícia e louvou o delegado de
Polícia de Pelotas, pelo “critério e discrição”, ao tomar,
“sem ostentação”, as medidas precaucionais. Registrou temer a
participação de orientais do Partido Blanco16.
A
agitação no Rio Grande agravara-se com o ingresso das tropas
imperiais no Uruguai, em setembro de 1864, com o apoio dos colorados.
Em fins daquele ano, as tropas do Império cercaram Paissandu,
ferrolho
oriental
sobre o rio Uruguai. Tentando reverter a difícil situação, à
espera do aliado paraguaio, em 27 de janeiro de 1865, a cavalaria
blanca
atacou
Jaguarão, na fronteira com o Uruguai17.
Em seu Relatório, João Marcelino acusou uruguaios vivendo no Rio
Grande de tentarem “desencaminhar” cativos para facilitarem a
invasão18.
Porém, após o ataque a Jaguarão, Paissandu foi tomada, em 2 de
janeiro de 1865, e Montevidéu rendeu-se, em 20 fevereiro,
comprometendo a intervenção paraguaia e, talvez, as articulações
para a sublevação de cativos sulinos. Quando da invasão
oriental,
os jornais sulinos não respeitaram as recomendações de discrição.
O Diário
de Rio Grande,
de 1º de fevereiro de 1865, informou:
O
estafeta de Jaguarão chegou ontem de tarde, com cartas
de
29, às 7 horas da noite. Os blancos atacaram de fato
aquela
cidade, mas não a penetraram, e foram repelidos
com
toda a energia [...]. [...] O inimigo retirou-se com direção
a
Bagé, depois de 30 horas de resistência, arrebanhando
para
mais de três mil cavalos e muitos escravos [...]. Uma
carta
de Arroio Grande noticia que o número de escravos
arrebatados
pelos vândalos subia a cem.19
Arroio
Grande encontra-se a uns cinquenta quilômetros a nordeste de
Jaguarão. O assalto da cavalaria blanca
criou
movimento de pânico. Em 31 do janeiro de 1865, o presidente da
Província escrevera ao conselheiro Pedro Carlos de Beaurepaire-Rohan
[1812-1894, ministro e secretário de Estado dos Negócios da Guerra:
No
dia 28 [de janeiro] [...] recebo a participação que me
fez
o comandante da fronteira de Jaguarão [...], de ter sido
invadido
o nosso território por uma força de – blancos –,
que
passara no passo da Armada, no rio Jaguarão, distante
da
cidade do mesmo nome quatro léguas; bem como que se
supunha
que igualmente tivessem invadido o nosso território
pelos
passos de São Diogo e Centurião [...].20
Os
exageros seriam corrigidos. As tropas uruguaias eram inferiores aos
dois mil homens propostos e o combate não fora renhido. Os invasores
teriam tido uns “quatro mortos e seis feridos”; os brasileiros,
“um morto e cinco feridos”21.
O presidente da Província acreditava “haver muita exageração”
na afirmação de que levaram “três mil cavalos e um número muito
avultado de escravos” e “raptadas algumas mulheres”, pois não
haveria “pelas imediações das fronteiras, na zona por eles
percorrida, grande quantidade de cavalos” ou de “escravos”22.
O que era uma inverdade, devido ao importante polo escravista
charqueador de Jaguarão.
Alarmismo
A
imprensa refletia a intranquilidade dos escravistas. O Diário
de Rio Grande,
de
2 de janeiro de 1865, noticiava:
Consta-nos
que sua excelência o sr. presidente da Província
recebeu
ontem parte oficial de Jaguarão, que confirma tudo
quanto
dissemos [...]; com diferença porém que o inimigo
tomou
caminho de Santa Vitória, e não de Bagé. Constanos
também
que a maior parte dos escravos arrebatados
tem
fugido das fileiras blancas e procurado a casa de seus
senhores.23
Muito
logo, ao temor motivado pela invasão se acrescentaria o medo de
insurreição servil. O
Comercial,
também de Rio Grande, em sua edição de 6/7 de fevereiro,
noticiaria, por primeiro, problemas
com
os cativos na região: “Foi ontem [dia 5] recolhido à cadeia, por
ordem do sr. delegado de Polícia, o escravo do sr. Manoel Antonio
Lopes, por nome Bonfim, chefe dos sublevados de Santa Izabel.” A
revolta teria ramificações no distrito de Taim e suspeitava-se da
participação de uruguaios24.
A vila de Santa Izabel, no canal de São Gonçalo, que liga a lagoa
Mirim e dos Patos, sediava diversas charqueadas, com importante
escravaria. Em 7 de fevereiro, o delegado de Polícia de Jaguarão
notificara a presidência da Província:
Do
segundo distrito da freguesia do Arroio Grande [termo
de
Jaguarão], me foram remetidos oito escravos, sendo
ali
presos como suspeitos e convenientes na insurreição
da
escravatura que devia ter lugar na ocasião em que
fosse
invadida nossa fronteira pelas forças do governo de
Montevidéu.
Pelo depoimento do preto Florêncio, escravo
de
Marcos José da Porciúncula, que parece ser o que se
encarregou
de falar aos outros escravos, e declara que foi
convidado
para isso pelo oriental José Benito Varella, que
muitos
dias antes da invasão o convidara para que passasse
para
o Estado Oriental, dizendo que seria esse início de
gozar
a liberdade.
25
O
delegado acreditava que “algum plano” fora “combinado” e que
abortara por “circunstâncias, por ora desconhecida” e prometa
seguir “nas mais severas indagações”, pois tinha “denúncia
de alguns escravos moradores nesta cidade [Jaguarão], como
cúmplices” na conspiração26.
Mais tarde, em ofício de 18 de fevereiro, o presidente da Província,
em Pelotas, comunicava ao ministro da Justiça, que seguia “para a
província de Santa Catarina o oriental Benito Varella,
ex-vice-cônsul de Jaguarão”. Ele fora preso, na freguesia de
Arroio Grande, por “suspeita de aliciador de escravos para
insurgirem-se” e que, devido à intranquilidade “geral na
província” causada pelas “suspeitas mais ou menos fundadas de
insurreições de escravos”, efetuaram-se “muitas prisões e
castigos”, já que a população “enxerga em cada oriental um
aliciador” exigindo “sua prisão e deportação”. O presidente
assinalara que indagações posteriores levavam a crer que as
suspeitas sobre oriental Benito Varella fosse infundadas27.
Em 8 de fevereiro, o jornal O
Comercial,
de Rio Grande noticiava:
Segue
preso no vapor Guarani, o oriental José Benito
Varella,
que foi remetido do Chasqueiro, pelo respectivo
subdelegado
do distrito, em conseqüência de andar
aliciando
escravos [...]. Se o sr. Varella assim procedia é
para
admirar, porque sendo casado com senhora brasileira
e
tendo filhos e netos brasileiros... Talvez que o sr. Varella
esteja
inocente, assim o cremos.28
Desde
que assumira como vice-cônsul uruguaio em Jaguarão, em 1857, Benito
Varella destacara-se pela em favor de afro-uruguaios escravizados
ilegalmente, o que motivara sérios atritos com os escravistas da
região29.
Medos
Fundados
Pelotas,
Jaguarão e Santa Izabel, polos charqueadores, com importantes
concentrações de cativos, despertavam preocupações, em momento de
confronto com forças blancos
do
Uruguai, que abolira a escravidão, em inícios dos anos 1840. Porém,
a escravidão de fato ou velada, era praticada nos departamentos
setentrionais do Uruguai, nas estâncias pastoris de rio-grandenses.
Tal situação fora uma das razões da exigência, por aqueles
criadores, de intervenção imperial, já que o governo oriental
esforçava-se para fazer cumprir a abolição na região30.
Ao saber do ataque a Jaguarão, o presidente da Província pensara
imediatamente nos cativos da pequena povoação de Santa Izabel:
As
quatro horas da madrugada de 29 [de janeiro] saiu o
vapor
para Jaguarão. Expedi próprios [mensageiros] em
todas
direções, ativando a reunião de forças. Mandei intimar
a
todos os charqueadores residentes na povoação de Santa
Izabel
(18 léguas distantes de Jaguarão), para nos iates,
transportarem
todos os seus escravos para a margem oposta
do
rio São Gonçalo.31
Ainda
em Pelotas, preocupado com a situação, o presidente da Província
mandara a escuna Bojuru para Santa Izabel, na manhã de 20 de
fevereiro. O tenente Jacinto Furtado de Mendonça Paes Sena,
comandante da companhia de Aprendizes de Marinheiro do Rio Grande do
Sul, a bordo da escuna, fundeada diante de Santa Izabel, anunciava
que chegara na madrugada de 23 à destinação, tendo falado apenas
no dia seguinte com o subdelegado da região, que morava a oito
léguas de Santa Izabel.
O
tenente comunicava que os ânimos estavam sossegados e que já
retornavam as “famílias” que, temendo um levante servil, “se
haviam retirado”. Informava que o subdelegado, dispondo de “gentes
bastante”, não julgava necessário que “os presos” fossem
conservados a bordo da escuna Bujuru. Entretanto, as notícias sobre
a conspiração não se restringiam a Santa Isabel, Arroio Grande e,
talvez, Jaguarão32.
A
Conspiração de Piratini
Em
8 de fevereiro, O
Comercial reproduzia
correspondência de 4 daquele mês, de Piratini, vila a uns oitenta
quilômetros a noroeste de Pelotas:
[...]
estamos desde 29 do passado [janeiro], em alarme,
não
por medo dos blancos, mas sim pela escravatura e
emigrados
[...]. Anteontem [2 de fevereiro] apareceu a
notícia
de haverem convites entre os escravos para se
sublevarem;
isto foi descoberto e já se acham na cadeia
16
dos tais, entre eles o cabeça. O dia marcado dizem
seria
amanhã [5 de fevereiro]. Todas as famílias estão
muito
assustadas. Amanhã seguem para essa cidade sete
emigrados
que por aqui vagaram e trata-se de prender todos
os
mais que existem em grande número [...]; pois consta
até
que parte dos convites foram feitos por eles mesmos.33
O
Comercial seguia
informando: “Chegou ontem [dia 7] uma força conduzindo um número
considerável de presos, uns desertores do exército e outros
orientais matreiros, remetidos pelas autoridades de Piratini, os
quais foram recolhidos à cadeia civil”34.
Os uruguaios seriam a seguir enviados para a capital.
No
dia 17 de fevereiro, o Diário
de Rio Grande publicava
longa carta de correspondente em Piratini, do dia 10. Com a notícia
da invasão de Jaguarão, 38 soldados da Companhia da Infantaria da
Guarda Nacional de Piratini, sob a chefia de seu capitão, Querubim
Candido, e demais oficiais, partiram em “socorro dos jaguarenses”,
em 31 de janeiro. Ao chegarem “no mesmo dia, à freguesia das
Cacimbinhas, a uns vinte quilômetros a sudoeste de Piratini, já com
mais de sessenta praças”, não encontraram a “reunião de
cavalaria” que já estava “para o lado de Candiota”, onde se
incorporariam às tropas de João da Silva Tavares, barão de Serro
Alegre. Tendo sido o capitão Querubim Candido informado por “cidadão
mui respeitável”, Manuel Luís d’Ávila, de “veementes
indícios” sobre uma “haitiada” no município, retrocedeu com
seus homens e acampou no passo de Manuel Lucas da Costa, onde lhe foi
entregue, à noite, por seu escravizador, o cativo Cassemiro, tido
como um dos líderes do movimento. Após mandar prender os
conspiradores, que, em muitos casos, foram encontrados armados,
Querubim Candido retornou a Piratini, levando também a João
Castelhano, tido como sedutor
– aliciador
– dos cativos, e um índio, talvez agregado na região. Os “dez
crioulos [da província] presos” se uniram aos “sete orientais
que estavam na cadeia”.
Segundo
o Diário
de Rio Grande,
a delegacia de Polícia interrogou os detidos e “providenciou
energicamente”, o que resultou na prisão de mais de trinta
cativos. A insurreição eclodiria na noite de 4 de fevereiro, e os
“insurgidos, com divisa branca no chapéu” [do partido blanco],
saqueariam Piratini e, com seus parentes, engrossariam as “fileiras
‘branquilhas’”. Na noite de 6 de fevereiro, teriam sido
remetidos para Pelotas oito desertores da infantaria da primeira
linha e sete orientais, entre eles o primeiro-sargento Ambrózio,
presunto “principal motor da projetada insurreição”. O Diário
de Rio Grande assinalava
o perigo de repetirem-se tragédias iguais às de “Spartacus em
Roma, e Tossaint-Louventure em São Domingos”, quando a fronteira
era “poluída” “por uma horda de vândalos”35.
A
Insurreição da Capororoca
Segundo
o “Mapa dos presos que frequentam a cadeia civil da vila de
Piratini”, durante 1865, de 3 de janeiro de 1866, três vagas
repressivas abateram-se sobre os cativos do município, com treze
suspeitos presos no dia 2; oito, no dia 3; nove, no dia 6 e,
finalmente, três, no dia 9 de fevereiro. Assim, 33 cativos foram
aprisionados e indiciados. Entre eles, não se encontra Cassemiro,
tido como cabeça do movimento. No mapa, encontram-se anotados os
nomes de seis homens livres, todos “indiciados na insurreição de
escravos”, apesar dos nomes aportuguesados, possivelmente orientais
acusados de insuflarem a revolta. Todos ingressaram no cárcere antes
da prisão de Cassemiro, em 2 de fevereiro. João José Romeiro foi
preso em 29 de janeiro, dois dias após o ataque oriental a Jaguarão;
Manoel Centurião, no dia 30; o primeiro-sargento Ambrózio Martinho,
Valentino Foppo, Santana Sabento [?] e São Gonçalves [?], no dia
31. Eles foram enviados para Pelotas, em 5 de fevereiro36.
O
inquérito aberto pelo delegado de Polícia de Piratini, em 6 de
março, arrola os cativos prisioneiros e seus proprietários:
Domenciano, de dona Carlota Vandin; Fortunato, de José de Brum de
Souza; Mateus, de dona Constância da Rosa; André, de Urbano da
Rosa; Guilherme, da viúva Euzébia Vandin; Antônio, de João
Correia de Souza; Damião, de João Correia de Souza; Cassemiro, de
João Antônio d’Avila; Antônio e Pedro, de José de Oliveira
Madeira; Lino, da viúva Maria d’Ávila; Tomé, de José Olino da
Rosa; Silvano e Alexandre, de José Pimentel de Mello; Fidelis e
Lívio, de Francisco de Lima Simões Pires. Apenas doze foram
interrogados e três, pronunciado como réus37.
Segundo os autos do inquérito, a conspiração iniciara, no mínimo,
em meados de janeiro de 1865, possivelmente por iniciativa do
oriental Ambrózio de
Tal,
o primeiro-sargento citado pelo Diário
de Rio Grande,
que andava, “imigrado”, “vagabundeando” pelos campos do
município, visto em “convivência” com o cativo Tomé, de 36
anos. Os autos sugerem o envolvimento certo do cativo Tomé e,
bastante incerto, de André, da mesma idade. Interrogados, os dois
juraram terem rejeitado o convite para participarem da revolta. Tomé
disse ter sido aliciado pelo “preto André” e este, por
Cassemiro. O cativo Cassemiro, de 26 anos, teria tomado a frente da
iniciativa, levando a imprensa a apontá-lo como possível cabeça.
Segundo os autos, convidara os cativos Alexandre, André, Antônio,
Demenciano, Felisberto, Guilherme, José, Lino, Pedro, Silvano e
Tomé. Dentre estes, José, de 27 anos, declarara que fora convidado,
inicialmente, pelo oriental Ambrózio, em meados de janeiro, que
prometera levá-lo ao Estado Oriental, “pois assim ficaria livre do
cativeiro e que seu senhor não o poderia ir [lá] buscá-lo.” O
mesmo convite que o oriental José Benito Varella teria feito a
Florêncio, em Arroio Grande, talvez na mesma época.
O
Orgulho da Revolta
Sem
negar participação destacada, Cassemiro declarou que fora convidado
por Tomé, o “cabeça ou o influente” da conspiração. Afirmou
que Tomé ficara responsável pelos convites na parte norte do
município, e ele, na parte sul. Declarou que, após reunirem os
arrolados por ambos, assaltariam, na noite de domingo, 5 de
fevereiro, Piratini, para roubarem “armamento, roupa e tudo o mais
que pudessem levar, assim como moças brancas”. Cassemiro propôs
que, “todos, no dia da reunião”, se apresentariam “com uma
fita
branca no chapéu para serem conhecidos” e que os conspiradores
seriam entre “vinte e tantos ou trinta”, que declarou, quase
orgulhoso, “prontos para marcharem”. No total, foram interrogados
doze cativo, que confirmaram os convites para “fugarem para o
Estado Oriental”, após o saque de Piratini, e jurarem, à exceção
de Cassemiro, terem rejeitado a proposta. Teria sido forte a pressão
dos proprietários pela libertação dos seus cativos, após a
correção
que
certamente receberam. A maioria dos 33 cativos aprisionados
permaneceu poucos dias na prisão. Dois, foram libertados após um
dia de cárcere; oito, após dois dias; cinco, após quatro dias;
dois, após cinco dias; dois, após seis dias; um, após oito dias;
três, após onze dias; um, após dezessete dias; dois, após
dezoito
dias; dois, após dezenove dias e um, após 24 dias.
Era
grande a dispersão
dos
cativos envolvidos na conspiração. Entre os proprietários de
cativos arrolados pelo “Mapa” da prisão de Piratini, apenas José
Dutra de Andrade possuía três conspiradores;
todos os outros, possuíam dois ou um. Piratini era região dedicada
à produção pastoril, na qual, em geral, as unidades produtivas
possuíam em torno de meia dúzia de cativos campeiros. Dos 34
suspeitos, apenas três foram declarados réus. Com os
interrogatórios e depoimentos realizados em Piratini, a Justiça
instruiu processo, por crime de insurreição, contra Tomé, André e
Cassemiro. Os autos reafirmam o plano insurrecional, com envolvimento
de oriental ou orientais blancos.
Moças
Brancas
A
conspiração previa reunião, na estrada que ia para Bagé, no
“lugar denominado Capororoca” [nome de árvore], no sábado, dia
4, para assalto, na noite de domingo, dia 5, venda de Piratini, para
obter o armamento necessário à rapina da vila. Os cativos
pretendiam apropriar-se de “armamento”, de “roupas” e do “que
pudessem encontrar”. Outra localidade menor, a capela da Luz, seria
atacada. Antes da fuga para o Uruguai, sequestrariam as “moças
brancas”, como declarara Cassemiro, e matariam os “homens
brancos”.
Os
conspiradores eram solteiros e campeiros, atividade à qual
associavam, segundo parece, a função menos digna de “lavradores”.
Em geral, os cativos campeiros conheciam condições de existência
superiores aos assenzalados. Por razões próprias à produção, o
trabalhador pastoril, cativo ou livre, raramente se casava, realidade
que se manteve no mínimo até os anos 197038.
Os conspiradores contavam com a participação inicial de vinte a
trinta cativos, certamente montados, pois a conspiração envolveu
cativos campeiros. Os chefes do movimento pensavam engrossar o
movimento convidando durante a “marcha” outros cativos e levando,
“amarrados”, os que resistissem. Tomé, André e Cassemiro haviam
nascido e crescido em Piratini. Interrogados, os proprietários
afirmaram que os conheciam desde o nascimento, ou quase, e que tinham
tido, sempre, “bons precedentes” e servido como “bons
escravos”. Os sedutores e principais
da
insurreição seriam, segundo voz corrente, os orientais Ambrózio de
Tal e
João Materina [?]. A referência direta do cativo José, de 27 anos,
ao convite do primeiro-sargento oriental Ambrózio e a concordância
sobre a “fita branca no chapéu”, como distintivo da conspiração,
não deixa dúvidas sobre a influência oriental blanca
direta
no plano.
Ao
serem interrogados, os cativos explicaram a [pretensa] rejeição a
participarem na revolta na fidelidade
aos
escravizadores complacentes,
retomando discurso escravista: Alexandre não queria sair “da casa
de seu senhor”; Domenciano disse que “sua senhora o tratava bem”;
Lino “vivia bem” “em companhia de sua senhora velha”; Pedro
afirmou que “seu senhor nunca lhe dera motivo para fugir”, etc.
Ao contrário, Tomé declarou que declinara do convite que André lhe
fizera porque “vinham os Blancos para cá e que [de] toda a
maneira”, ele e seu sedutor,
estariam
mal. Tratando-se
ou não de erro de transcrição [mal
por
bem]
a inesperada reflexão do cativo corroborava sua ligação com o
sargento Ambrózio, sua participação na conspiração e
conhecimento da situação conflituosa no Uruguai.
Silêncio
Absoluto
As
autoridades perguntaram aos interrogados por que não denunciaram a
conspiração. As respostas variadas registraram a dificuldade em
superar a contradição entre a proposta de terem
rejeitado participar no mote e
o silêncio absoluto mantido sobre o projeto de saque à cidade, de
sequestro das sinhazinhas, de morte dos sinhozinhos e de fuga para o
Uruguai. Demenciano disse que o convite era “mísera sassoada”.
Lino, que silenciara por medo de Cassemiro. Silvano não fizera
“cargo do convite louco”. José fora ameaçado de morte pelo
oriental. Pedro não quisera ser chamado de “inverdadeiro”, nem
“comprometer-se” a si e a Cassemiro. André fizera pouco “caso
do convite”. Antonio obedecera à ordem de silêncio da “crioula
Antônia”. Felisberto não quisera “saber [de] semelhante
asneira”, etc.
A
documentação não revela como a conspiração fora denunciada.
Segundo a cronologia das prisões, registrada no “Mapa” dos
presos da cadeia pública de Piratini, o plano poderia ter sido
revelado por algum uruguaio, preso nos últimos dias de janeiro.
Cassemiro, apresentado por parente de seu proprietário, fora preso
apenas em 2 de fevereiro. O certo é que a conspiração circulara
entre a escravaria, por talvez mais de um mês, sem transpirar.
Cumplicidade nascida talvez das relações interpessoais dos
envolvidos, todos campeiros e, possivelmente, crioulos do município.
Em
4 de julho de 1865, o promotor público de Jaguarão, João Franco de
Oliveira Souza, declarava que não encontrara nos autos matéria para
“um despacho de pronuncia contra” os réus. Portanto, em teoria,
no final do mês, após quase cinco meses de prisão, Tomé, André e
Cassemiro seriam devolvidos aos escravizadores. Os proprietários
foram absolvidos
das
custas do processo. O Mapa da prisão de Piratini registra a
libertação de André, em 27 de julho de 1865, enquanto Tomé teria
sido libertado
apenas
em 2 de novembro. Não temos registro positivo sobre o destino de
Cassemiro39.
A
condenação a longos anos de prisão por insurreição punia mais os
proprietários do que os cativos que, não raro, cometiam atos
imputados como crimes e se apresentavam, buscando na prisão uma
quase liberação. Nesses anos, um cativo campeiro valia uma boiada!
Longas condenações de três dezenas de cativos significariam sério
golpe na economia de Piratini. A justiça escravista privada
tinha
suas regras e recursos. Como punição, os cativos podiam e foram
castigados fisicamente, em forma mais ou menos rígida. Era comum que
após serem libertados, perdessem privilégios
e
fossem vendidos para longe de suas relações e da terra em que
nasceram. Talvez, muito logo, Tomé, André, Cassemiro e outros
envolvidos na tentativa insurrecional da Capororoca tenham sido
alforriados, sob pagamento, como milhares de outros cativos, para
partirem, não raro algemados, para os campos de guerra do Paraguai.
O
Perigo Negro
O
pânico vivido pelos escravizadores levou-os a pequenos “pogrouns”
contra cativos, libertos e negros livres. Segundo o Diário
de Rio Grande,
de 17 de fevereiro, na vizinha vila de São José do Norte, a polícia
seguia averiguando e castigando “aos pretinhos crioulos do 1°.
Distrito” tido como “insolentes ‘capadócios’” e “amigos
da vadiação.” Entre os “surrados” estavam o “célebre
Manuel Cambão e Adão, de Mostardas” e “Maximiano, escravo do
Jerônimo Marinho Falcão”40.
Segundo o jornal, de 19 de fevereiro, espiões orientais eram vistos
em todos os cantos e “patrulhas de particulares, a cavalo”
secundavam a polícia, em Rio Grande, São José do Norte e Canguçu.
Em 15 de março, o jornal publicava carta de seu correspondente em
Canguçu, de 26 de fevereiro, que temendo escrever explicitamente
sobre os fatos, registrava o medo, ódio e desprezo para com os
libertos e cativos:
[...]
os moradores [...] desta vila, não tendo aqui uma
força
qualquer armada, que pusesse a coberto suas vidas,
honra
de suas famílias e propriedade, de algum assalto de
ladrões,
assassinos, ou de algum atentado da parte de nossos
AMIGOS
(invertido) de cor BRANCA (invertido) ou dos
blancos;
de seu motu próprio [...] formaram uma companhia
de
voluntários [...] se apresentavam todas as noites dezoito
homens,
fazendo patrulha, e outros aquartelados [...]. Esta
medida
era útil e proveitosa em vários sentidos. 1° era um
respeito
que impunha e em que as famílias confiavam [...].
2°.
Impunha respeito aos tais pretinhos [sic], no caso de
quererem
– batucar – e tanto receavam que ninguém já via
um
passeador noturno desta laia [sic].41
Em
18 de fevereiro, o Diário
de Rio Grande noticiara
a descoberta de uruguaio em uma senzala:
Em
Pelotas foi encontrado, na noite de anteontem, um
‘oriental’
dentro da senzala dos escravos da xarqueada
do
sr. Heleodoro da Azevedo e Souza; que ‘não sabendo’
como
ali fora transportado, foi conduzido para a cadeia
por
‘inocente’.42
Crescia
o medo de “emissários” e “espiões” estrangeiros. Lia-se no
mesmo jornal, de 19 de fevereiro de 1865, quando o domínio imperial
sobre o Uruguai transformava Francisco Solano López e o Paraguai nos
inimigos temidos: “Constanos que temos na província espiões do
selvagem Lopez do Paraguai e que aí pelo Rio Grande vagueia um de
tantos, que tendo recebido daquele tirano porção de onças [...].
Olho vivo com ele”43.
O
Que Aconteceu?
A
documentação sugere projeto articulado por enviados do Uruguai, que
associaria o ataque da cavalaria blanca
a
Jaguarão com o abandono das senzalas em Cacimbinhas, Santa Izabel,
Arroio Grande e Piratini e, talvez, em outras regiões do sudeste
sulino, com datas em torno do dia 4 e 5 de fevereiro. A prisão de
uruguaios blancos
acusados
de seduzirem
os
cativos e um registro indiscutível de tal ação, em Piratini,
reforçam a hipótese. É também crível que parte da agitação nas
senzalas nascesse do ataque blanco
a
Jaguarão e da esperança de possível derrota imperial, que
facilitaria fugas individuais ou coletivas.
A
“Proclamação” do general Basilio Munhoz, escrita no Uruguai, em
20 de janeiro de 1865, portanto, alguns dias após os primeiros
convites do uruguaio Ambrózio aos cativos de Piratini, registra que
as forças blancas
contavam,
ao assaltar Jaguarão, com a possibilidade da revolta servil na
fronteira:
Proclamação.
O general em chefe do exército da vanguarda
da
República Oriental do Uruguai. Soldados! Vamos pisar
o
território que o império do Brasil nos há usurpado, é
necessário
que com vosso patriotismo reconquistemos
seu
domínio, fazendo tremular nele nossa bandeira, e dar
a
liberdade aos desgraçados homens de cor que gemem
debaixo
do jugo da escravidão, que a humanidade reprova
[...].44
Porto
Alegre: Cativos & Paraguaios na Luta pela Liberdade
Em
novembro de 1865, uma carta anônima denunciava conspiração servil
em Porto Alegre. Ela teria sido enviada ao ministro da Guerra, na
Corte, que a passara ao presidente da Província, que a expedira ao
comandante das Armas do Rio Grande que a entregara ao chefe de
Polícia da Província. Finalmente, este último determinara ao
subdelegado do segundo distrito de Porto Alegre que investigasse a
denúncia, que se comprovou como falsa. O cativo Manoel, “de
Lourenço de tal, alemão”, citado como conspirador, havia muito
fora vendido para fora da província. O preto Augusto, de José
Inocêncio Pereira, também denunciado, vigiado, comportara-se
corretamente, ao igual que Pompeu, de Maria Joaquina Corte Real. O
vice delegado acreditava que a “denúncia anônima” não teria
“fundamento”. Também foram vigiados sem resultados os cativos
Martinho e Clemente.
Em
junho de 1868, foi descoberta em Porto Alegre importante conspiração.
Os cativos Dionísio, Patrício e Teodoro, do negociante Francisco
Ferreira Porto, arregimentaram importante escravaria para rebelar-se,
à noite, quando das festado do Espírito Santo. A data fora
transferida para a noite de São João, 24 de junho, por Patrício,
cabeça do movimento, que crera que “desgraças desnecessárias se
poderiam dar nessa noite, com mortes de mulheres e crianças”, pois
reinaria “grande confusão”, quando os “insurgentes” tomassem
a “praça do palácio [atual praça da Matriz]”, que estaria
“cheia de povo a assistir aos fogos e festas”. Temia-se também
que a confusão malograsse o plano45.
Patrício encomendara a um cativo do capitão Manoel Joaquim, morador
do Caminho do Meio [av. Osvaldo Aranha], “doze dúzias de cabos de
lança para neles encravar-se facas e quaisquer outros instrumentos”,
para servirem de lanças. Os sublevados se reuniriam na chácara do
Caminho Novo, do proprietário
dos
conspiradores, para partir, a uma da madrugada, em divisões, para
tomarem o quartel da Guarda Nacional, onde sabiam “que dormia pouca
gente”, o “Laboratório Pirotécnico” e do “Arsenal de
Guerra”. Pretendiam assim apoderar-se de armas, entre elas, “dois
rodízios”, no Laboratório Pirotécnico. Um grupo de rebeldes
assaltaria e libertaria os presos da Cadeia, para que aderissem ao
movimento. Os cativos planejavam entrar na cidade dando “vivias”,
que seria obtida com a revolta.
A
conspiração ultrapassou os marcos da população escravizada
porto-alegrense. Sob interrogatório, Patrício confessou que os
conspiradores aliciaram para o movimento os “prisioneiros
paraguaios” que, transferidos para Porto Alegre, perambulavam com a
grande liberdade na capital. Para a revolta, fora contatado o
paraguaio Gabino Flores, que comunicara o plano, no mínimo, aos seus
patrícios Toribio Palácios, Julião [sic] Flores e Miguel Cacere
que, interrogados foram obrigados a confessar que estavam cientes da
conspiração. Defenderam-se apenas dizendo que haviam acreditado que
o “escravo estava embriagado”. Entretanto, por “prevenção”,
segundo parece, ao menos parte dos soldados prisioneiros dormira no
quartel, na noite do Espírito Santo. O que permitiria, certamente,
que participassem do entrevero. Sem maiores resultados, as
autoridades investigaram os soldados, através de “dois paraguaios
de toda a confiança”, sem maiores resultados, o que não impediu
que tomassem medidas precatórias contra os quatro indigitados.
Plano
Detalhado
A
conspiração de junho de 1868 destaca-se pela coerência do plano
articulado e pelo inteligente e oportuno envolvimento dos
prisioneiros paraguaios. O ataque e a captura de armas, nos
principais centros militares da capital, era projeto arriscado mas
factível, ao menos em parte. O movimento dos cativos
porto-alegrenses explicita também as limitações objetivas dos
trabalhadores escravizados nesse momento histórico. Em processo de
queda de peso absoluto e relativo na população brasileira, tendo
diante de si proprietários escravistas unificados e bem armados, sem
poderem articular projeto alternativo de sociedade, em momento em que
superar as fronteiras não lhe garantiriam a liberdade, pretendiam,
com as armas na mão, exigir a liberdade.
O
envolvimento dos prisioneiros paraguaios sugere talvez eventual plano
de fuga para o Paraguai, ainda que, nesse momento, a estrela guarani
estive já em queda livre.Como em muitos outros casos, o movimento
foi denunciado por um cativo, Antônio Maria, de Gabriel Francisco de
Oliveira, morador “no lugar denominado Mato Grosso do Distrito de
Belém”, que convidado para participar da revolta pelo “pardo
Dionísio”, denunciara o plano ao seu escravizador, que o comunicou
ao chefe de Polícia, Belarmino Peregrino da Gama e Melo, em 9 de
junho. O alcaguete Antônio Maria aceitou buscar maiores informações
junto os conspiradores, principalmente sobre depósitos de armas, sem
resultados. Os organizadores da revolta tinham consciência da pouca
confiança que podiam depositar em muitos de seus companheiros de
cativeiro. Obrigados a ampliar a adesão ao complô, conchavavam “sem
reserva” os cativos confiáveis e convidaram, os incertos,
confiáveis “para um baile”, no local de onde partiriam para
assaltar a cidade. O cativo Antônio Maria foi recompensado com a
liberdade. A presidência da Província pagou a elevada soma de
1:400$000 réis ao seu proprietário e comprometeu-se em não
obrigá-lo a assentar praça para partir para o Paraguai, destino
talvez pior do que a vida sob a escravidão. O proprietário do
alcaguete comunicara às autoridades que não o venderia, se fosse
mandado para a guerra, já que, “para semelhante” Antônio Maria
“não queria” “ser liberto”. Depoimento inarredável sobre
sentimento entre os escravizados sobre aquele conflito, em meados de
1868.
A
alforria certamente foi divulgada entre a população cativa da
capital. As autoridades provinciais destacaram, ao aprovarem a
libertação, que ela serviria “para tornar vigilantes outros
escravos, denunciando ao “Governo iguais atentados”. Não foi
porém aberto processo de “insurreição” contra os
conspiradores, castigados fisicamente, “de acordo com os seus
senhores”, pois “não chegara a haver tentativa, e só preparo,
do plano”. O historiador Rui Vieira da Cunha, que retirou esses
importantes sucessos do olvido, lembra que, a pesar da sua
importância, o presidente da Província achara por bem não os
incluir no seu relatório oficial, sobre os principais acontecimentos
de 1868.
RESUMO
Nos
anos 1863-68, com população escravizada crioula e ladinizada,
o Rio Grande do Sul conheceu importante ciclo de agitações e
conspirações de trabalhadores escravizados. A eventual participação
de libertos e, sobretudo, de homens livres, deveu-se em grande parte
à crise então em curso na bacia do Prata – intervenção do
Império no Uruguai, em 1864, e Guerra da Tríplice Aliança, em
1865-70. Esses movimentos destinavam-se a reivindicar a liberdade de
posição de força ou promover fugas para o Uruguai, sob governo do
Partido Blanco, que lutava para fazer respeitar a abolição da
escravatura no norte do país.
Palavras
Chave: Insurreições
escravas; Insurreição urbana; Escravidão Rio-Grandense.
ABSTRACT
During
the 1863-68’s, with its creole and ladinizada
slave
population, Rio Grande do Sul experienced an important cycle of
unrest and slaves conspirations. Emancipated slaves’ and,
particularly, free men’s participation was mostly due to the crisis
in Plata region – 1864’s Empire intervention in Uruguay and
1865-70’s Paraguay War. These movements’ aim was to claim liberty
or promote flights to Uruguay, governed by Partido
Blanco,
which fighted to make slave abolition be respected in the north of
the country.
Keywords:
Slaves
Insurrections; Urban Insurrection; Rio Grande’s Slavery.
1
Doutor
em Ciências Históricas pela Université Catholique de Louvain,
Bélgica. Professor titular do Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo.
E-Mail: maestri@via-rs.net.
2
Cf.
CONRAD, Robert. Os
últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888.
Rio de Janeiro:
Civilização
Brasileira; Brasília, INL, 1975; ISOLA, Ema. La
esclavitud en el Uruguay desde sus
comienzos
hosta su extinción (1743-1852).
Montevidéu: Facultad de Humanidades y Ciencias,
1975.
3
Cf.
MAESTRI, Mário. O
escravo no Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: EST; Caxias do Sul, EDUCS,
1984.
4
Arquivo
Nacional, série IJ (1) 585; Arquivo Histórico do RGS (AHRGS),
códice B.1.112.
5
Cf.
GUTIERREZ, Ester J. B. Negros,
charqueadas e olarias: um
estudo sobre o espaço pelotense.
Pelotas:
UFPEL; Mundial, 1993.
6
AHRGS,
Códices A.5.110. Correspondência do presidente da Província a
diversas autoridades.
7
Cf.
CONRAD. Os
últimos anos..., p.57
et
seq.
8
Cf.
SEVERAL, Rejane da Silveira. A
Guerra Guaranítica. Porto
Alegre: Martins Livreiro, 1995.
9
Cf.
CASAL, Pe. Manuel Aires de. “Província do Rio Grande do Sul, ou de
São Pedro”. In:
__________.
Corografia
brasílica ou relação histórico-geográfica do Reino do Brasil –
Tomo I. São
Paulo:
Cultura, 1943, p. 101.
0
Arquivo
Nacional, Série IJ (1) 585.
11
Arquivo
Nacional, Série IJ (1) 585.
12
Arquivo
Nacional, série IJ (1) 586, Correspondência do presidente da
Província ao ministro e
secretário
de Estado de Negócios da Justiça, 29 de novembro de 1864.
13
Arquivo
Nacional, série IJ (1)586.
14
Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul [AHRGS], Porto Alegre, Caixa 74,
correspondência do
presidente
da Província com o Ministro da Justiça, ofícios 286 e 287.
15
Cf.
ZANETTI, Valéria. Calabouço
urbano:
escravos e libertos em Porto Alegre (1840-1860). Passo
Fundo:
UPF, 2002, p. 64.
16
GONZAGA,
João Marcelino de Souza. Relatório
com que o Bacharel João [...] entregou a
administração
da Província de São Pedro do Rio Grande ao Ilmo. e Exmo. Sr.
Visconde de Boa
Vista.
Porto Alegre, Typ. do Rio-Grandense 1865, p. 20 et
seq.
17
Cf.
BANDEIRA, L. A. Moniz. O
expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na bacia do
Plata:
Argentina, Uruguai e Paraguai – Da colonização à guerra da
Tríplice Aliança. 2. ed. Brasília:
Editora
da UnB, 1995; BARÁN, José Pedro. Apogeo
y crisis del Uruguay pastoril y caudillesco.
[1839-1875]
Montevideo: Banda Oriental, 2007.
18
GONZAGA,
Relatório
com que o Bacharel João...
19
Diário
de Rio Grande,
Rio Grande, 1º fev. 1865.
20
Correspondência
[Anno 1865]. Typografia Nacional: Rio de Janeiro, 1865, p. 10.
21
Correspondência
[Anno 1865], p. 13.
22
Correspondência
[Anno 1865], p. 13.
23
Diário
de Rio Grande,
Rio Grande, 2 fev. 1865.
24
O
Commercial,
Rio Grande, segunda e terça-feira, 6/7 fev. 1865.
25
AHRGS,
Delegacia de Polícia, Jaguarão, 1865, pasta III.
26
AHRGS,
Delegacia de Polícia, Jaguarão, 1865, pasta III.
27
Arquivo
Nacional, série IJ (1) 585, Correspondência do presidente da
Província ao ministro e
secretário
de Estado de Negócios da Justiça, 18 fev. 1865.
28
O
Commercial, Rio
Gande, quarta-feira, 8 fev. 1865.
29
LIMA,
R. Peter de.‘A
nefanda pirataria de carne humana’: escravizações
ilegais e relações políticas
na
fronteira do Brasil meridional. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal do Rio
Grande
do Sul. Porto Alegre, 2010, p. 117 et
seq.
30
Cf.
PALERMO, Eduardo Ramón Lopez. Tierra
esclavizada: el norte uruguaio en la primera mitad
del
siglo 19.
Dissertação (Mestrado em História). Universidade de Passo Fundo.
Passo Fundo, 2008.
31
Correspondência
[Anno 1865], p. 10.
32
AHRGS,
Marinha, Lata 536, maço 72.
33
O
Comercial, Rio
Grande, 8 fev. 1865.
34
O
Comercial, Rio
Grande, 8 fev. 1865.
35
Diário
de Rio Grande,
Rio Grande, 17 fev. 1865; APERGS, Piratini, 1ª Vara civil e de
crime,
1.1.1863-31.12.1869.
36
MAPPA
dos presos que frequentarão a cadeia civil da villa de Piratiny,
durante o anno de 1865,
com
declaração de nome, crime e data das entradas e saídas na prisão.
Piratini, 3 de janeiro de
1866.
AHRGS. Documentação judiciária, Piratini, 1866.
37
Arquivo
Público do Estado do Rio Grande do Sul [APERGS], Piratini 1ª Vara
civil e de crime,
01.01.1863-31.12.1869.
38
MAESTRI,
Mário. “O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a
fazenda pastoril riograndense
(1680-1964)”.
In: __________ & LIMA, Solimar Oliveira (orgs.). Peões,
vaqueiros &
cativos
campeiros:
estudos sobre a economia pastoril no Brasil. Passo Fundo: UPF
Editora/ CNPpq,
2010,
p. 212-300.
39
APERGS,
Piratini, 1ª Vara civil e de crime, 01.01.1863-31.12.1869.
40
Diário
de Rio Grande,
sexta-feira, 17 fev. 1865.
41
Diário
de Rio Grande,
15 mar. 1865.
42
Diário
de Rio Grande, Rio
Grande, sábado, 18 fev. 1865.
43
Diário
do Rio Grande, Rio
Grande, domingo, 19 fev. 1865.
44
Correspondência
[Anno 1865], p. 13; destacamos.
45
CUNHA,
Rui Vieira da. “Escravos Rebeldes em Porto Alegre”. In: MENSÁRIO
do Arquivo Nacional.
Rio
de Janeiro, ago. 1978, p.11-15; Correspondência do Presidente da
província de São Pedro do
RS
ao Ministro da Justiça. AN, série IJ 591.
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