"Hay hombres que luchan un dia y son buenos
Hay otros que luchan um año y son mejores
Hay quienes luchan muchos años y son muy buenos
Pero hay los que luchan toda la vida
Esos son los imprescindibles"
(Bertolt Brecht)

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Por que o RS optou pelo pior




O Rio Grande do Sul porta uma riqueza cultural única no Brasil, que resulta da contribuição de múltiplas nacionalidades e etnias - algumas autóctones, como as diversas nações etnolinguísticas que tivemos e temos (sem jamais esquecer o holocausto do bravo povo Charrua, que preferiu o sacrifício da vida a se deixar evangelizar pelos jesuítas); outras, exóticas, como europeus, asiáticos e africanos. Temos comunidades representativas de todos os continentes, que aqui se expressam, se miscigenam, e de alguma maneira contribuem para o nosso vasto painel cultural chamado Rio Grande do Sul.

Todavia, somos conhecidos como "gaúchos". Ou melhor, o pensamento político hegemônico achou cômodo e funcional adequar um velho vocábulo marginal e desprestigiado - o gaúcho - para identificar de forma grosseira e imperfeita o tipo humano mais meridional do Brasil. Logo, mesmo a muque, somos gaúchos. Um gentílico reciclado e remodelado para representar o povo sulino, portanto, um locativo arbitrário e insuficiente - reducionista e ficcional.

O significado das palavras é histórico, porque muda conforme as ondulações do tempo e das vontades. Camões (ao lado) dizia que mudam-se os tempos e mudam-se as vontades. Gaúcho já foi o tipo marginal, uma espécie de andarilho em busca de um porto seguro, e que desconhecia as normas sociais estabelecidas. É, inclusive, uma expressão multinacional, comum à região platino-pampeana. "Gauchos" (pronuncia-se gáu-tchos) são os uruguaios e grande parte dos argentinos.

Assim, se a imprecisão avulta, cresce também a necessidade de emprestar mais atributos identitários ao gentílico, a fim de definir os contornos de uma personalidade singular e exclusiva.

Que tal trazer do passado recortes plásticos para dar-lhe espessura e densidade histórica? A guerra civil de 1835-1845 contra o Império da família Bragança pode ser uma boa ideia. Tem muitos ingredientes épicos, tintas republicanas, espírito indômito, traços libertários, uma subjetividade não contaminada pela cultura etnocêntrica, etcetera, que podem formar um nexo neste constructo mítico que se está moldando meio às cegas.

Como em toda mitologia, foram sendo costurados elementos portadores de significado e que representam a realidade. É a bricolagem de Claude Lévi-Strauss. Uma vasta colcha de retalhos do real, improvisados de forma a combinar um todo que guarda coerência com o passado, mesmo que parte deles seja ficção, parte metalinguagem, parte historiografia, parte contingência, parte realidade transfigurada, parte ideologia, parte má consciência, parte fetichismo, parte gabolice, e por aí vai. O gaúcho, portanto, é uma obra em aberto, e por isso, em disputa. Uma obra que flutua, uma "ideia feita" (Flaubert) e refeita constantemente pelos seus sustentadores (ou mesmo adversários, por que não?).

Brincando um pouco, é possível dizer que o gaúcho (à moda de Michel Foucault no prefácio de As palavras e as coisas, onde cita Jorge Luis Borges) está catalogado como “uma certa enciclopédia chinesa onde está escrito que os animais [os gaúchos] se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) etcetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas”.

Quer dizer, cabe qualquer disparate para identificar esse "tipo ideal" (Weber) do bloco no poder sul-rio-grandense.

Semanas atrás, uma empresa midiática familial sulina, de grande influência no poder e no senso comum local, achou por bem em consultar os seus leitores/consumidores sobre quais seriam os principais personagens históricos do Estado, como se o senso comum dominasse de forma segura esse universo historiográfico e a partir disso pudesse fazer a classificação do panteão pretendido pela empresa de entretenimento. Por óbvio, havia uma cartela de nomes passíveis de representarem a farsa midiática, quase todos de ficção, alguns de ficção romanesca mesmo, como uma certa namorada do mercenário italiano Giuseppe Garibaldi, que hoje está entronizada como figura fundante da nossa "pequena pátria" (Comte).

Já se vê, pois, que há permissão para que qualquer indivíduo ou grupo incida nessa bricolagem mítica que é o constructo do gaúcho. É evidente que o pensamento hegemônico tira vantagem nessa disputa, afinal, detém a quase absoluta totalidade das mídias conhecidas, o Parlamento, o Executivo, o Judiciário, as Universidades, a publicidade, e uma formidável capilaridade no meio social, através da escola formal, clubes, associações, igrejas, entidades patronais, e mesmo sindicatos de empregados, etc.

Mas tem um componente neurótico nessa opção pelo tradicionalismo. Sim, porque entre dois tradicionalismos, escolheu-se o mais rústico e rasteiro. A que tradicionalismo nos referimos? Ora, o tradicionalismo vencedor é aquele filiado à corrente farroupilha de Bento Gonçalves da Silva, a tradição hegemonizada, portanto subalterna, é a de Julio Prates de Castilhos (ao lado), o responsável por um movimento político burguês que ainda no século 19 projetou o Rio Grande do Sul no século 20.

Hoje, predomina um ethos que corresponde à tradição imposta por um antigo ladrão de equínos e bovinos, Bento Gonçalves da Silva. São esses traços psicossociais que estão no poder no Estado, agora. A tradição representada pelo burguês modernizador, revolucionário (no estrito senso do vocábulo), austero e incorruptível, que foi Castilhos, está subordinada ao pragmatismo mais rebaixado e deletério. Informe-se que Julio de Castilhos preferiu as dificuldades materiais e contingentes do que advogar para sobreviver, depois que foi alijado do poder. Alegava que não poderia - moralmente - sequer peticionar a um magistrado que fora nomeado por ele quando chefe do Executivo estadual.

Esse modelo político-moral está arquivado no Rio Grande, em favor de um padrão inspirado no abigeato e na apropriação indébita do público e do privado.

Se o Rio Grande chegou primeiro ao século 20 (antes mesmo do resto do País), hoje, sai por último do mesmo século. O Brasil, aos trancos e barrancos, e de forma parcial, já chegou ao século 21, mas o RS se arrasta e se enxovalha no pântano a que foi conduzido pela hipertrofia do pragmatismo maragato, cuja matriz político-ideológica foi forjada durante o século 19, depois da guerra civil de 1835, e se estendeu até 1891, no dia 14 de julho quando é proclamada a Constituição castilhista que induz a modernização burguesa e a promoção geral e complexa da província fronteiriça sulina.

O castilhismo-borgismo promoveu uma autêntica revolução burguesa no Estado. Algo que o próprio Brasil experimentaria somente depois de 1930, com a chegada de Getúlio Vargas (ao lado) ao poder. Se nós tivemos uma revolução burguesa do tipo clássica, cruenta, que modificou radicalmente o poder regional, modernizando-o e aportando valores republicanos, ainda que não-democráticos, o Brasil não a teve. A modernização do País e a institucionalização do Estado, bem como o processo de industrialização, foram conquistas, não da burguesia, mas da iniciativa do próprio Vargas - forjado e projetado no sistema castilhista sul-rio-grandense.

Assim, festejamos o 20 de Setembro, por um capricho rançoso dos perdedores de 1893 (e que estiveram no poder durante toda a segunda metade do século 19 e só souberam se apropriar de terras devolutas do Estado monárquico, especialmente na região da Campanha).

Por que não festejamos o 14 de Julho de 1891? Justo a data da proclamação da Constituição republicana. Esta data é o dia fundante da verdadeira república rio-grandense. Por que festejamos a outra, a república farrapa, que admitia o escravagismo e tolerava todas as religiões, desde que fosse a católica romana? Uma falsa república fundada por falsos líderes, os mesmos que assinam o vergonhoso pacto de Ponche Verde com o Império dos Bragança, e de quebra recebem uma polpuda "indenização". É caso único no mundo, o vencido receber indenização do vencedor. A rigor, o Império comprou a "rebeldia" dos farroupilhas, e estes se venderam pelo vil metal.

Artigo de Cristóvão Feil publicado neste blog DG em 20 de setembro de 2009. Estamos republicando-o a pedido de leitores.


Foto do alto: no dia 2 de janeiro de 2009, um anônimo montou em pelo sobre o belo monumento positivista que homenageia Júlio Prates de Castilhos, na Praça da Matriz, centro de Porto Alegre. O sujeito, por acaso nascido em Bagé (RS) principal cidadela maragata na revolução de 1893, foi preso e não soube explicar o gesto e a intenção. Foto de Fernando Gomes/ZH.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A maldição conservadora e a invenção do guasca

http://diariogauche.blogspot.com/2011/09/maldicao-conservadora-e-invencao-do.html

Antes de entrar no tema que quero comentar, chamo a atenção para o “Desfile Cívico-Militar do Vinte de Setembro” (conforme consta da programação dos seus organizadores, os dirigentes do MTG – Movimento Tradicionalista Gaúcho) que está se desenrolando hoje, precisamente 20 de setembro de 2011. 

Quero sublinhar a ênfase na expressão “cívico-militar” dado pelo MTG, em pleno século 21. Me explico. Ninguém desconhece a filiação positivista-comtiana dos republicanos brasileiros, na segunda metade do século 19. No Rio Grande do Sul, onde a República aconteceu depois de uma revolução cruenta que durou de 1893 a 1895, os positivistas foram mais radicais e, por isso, mais exitosos do que no resto do Brasil. Julio de Castilhos e os militantes do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) modificaram completamente o cenário político e social do estado mais meridional do País. No RS não houve a chamada troca de placa: sai a Monarquia dos Bragança, entra a República constitucional. Aqui, houve a mais completa e absoluta troca da elite no poder. Saem os velhos estancieiros pecuaristas da Campanha, entra uma composição de classes formada por uma pequena burguesia urbana, uma classe média rural, profissionais liberais e colonos de origem europeia da região serrana.

Os positivistas sulinos, fiéis aos ensinamentos dogmáticos de Auguste Comte, propugnavam – como o mestre – pela superação das fases pregressas da Humanidade. À fase militar-feudal deve seguir-se a fase industrial da Humanidade. Ou seja, à fase militar corresponderia a insurreição farroupilha de 1835-45 contra o Império do Brasil, agora – com o advento republicano – estávamos, pois, na hora de criar condições para o desenvolvimento e o progresso material que se daria por um processo intensivo de industrialização manufatureira. 
    
Vejam, pois, que os tradicionalistas do século 21 continuam com os olhos fixos num passado praticamente feudal, marcadamente militarista, embora não tenhamos experimentado, de forma hegemônica e total, esse modo de produção pré-capitalista no Brasil.  

Um dos formuladores intelectuais do que chamamos de ordem delirante do atraso – o pensamento tradicionalista da estância – foi Ramiro Frota Barcellos. Na obra “Rio Grande, tradição e cultura” (1915), o santiaguense é de uma clareza solar quanto aos propósitos enfermiços do tradicionalismo estancieiro: “O que agora se verifica, mercê do atual movimento tradicionalista, é a transposição simbólica dos remanescentes dos ‘grupos locais’, com suas estâncias e seus galpões para o coração das cidades. Transposição simbólica, mas que fará sobreviver, na mais singular aculturação de todos os tempos, o Rio Grande latifundiário e pecuarista”.

Qualquer semelhança com o enclave da bombacha e da fumaça que anualmente acampa, no mês de Setembro, no Parque da Harmonia, em plena área central de Porto Alegre, não é mera coincidência. A “mais singular aculturação de todos os tempos”, como premonitoriamente afirma Barcellos. Neste caso, “aculturação” é sinônimo de regressismo e estagnação.

É sobre isso que eu quero comentar brevemente.

Quando estudantes em São Paulo, Júlio de Castilhos e Assis Brasil chegaram a fundar um chamado “Clube 20 de Setembro”, que promoveu estudos – com algumas publicações - sobre o movimento farroupilha da primeira metade do século 19. Curiosamente, Castilhos abandonou as pesquisas sobre a guerra civil que varreu o Rio Grande por dez longos anos. Assis, em 1882, publicou a obra “História da República Rio-Grandense”. Por algum motivo, carente de melhores investigações, tanto os positivistas do PRR, quanto os liberais sulinos não foram muito enfáticos no culto farrapo. Tal fenômeno veio a ocorrer somente depois da Segunda Guerra, em Porto Alegre, no meio estudantil secundarista urbano do Colégio Estadual Julio de Castilhos. Daí se difundiu como rastilho de pólvora sob a forma dos onipresentes Centro de Tradição Gaúcho – CTG, que são clubes de convivência social onde se cultua o passado sob a forma fixa da mitologia farrapa, tendo como matriz formal a estética e o ethos do latifúndio da pecuária extensiva de exportação – subordinado à cadeia mercantil dos interesses hegemônicos ingleses na América do Sul. Quando os tradicionalistas se ufanam do pretensioso espírito autônomo e emancipado do chamado 'gaúcho' tout court, se referem ao Império dos Bragança, mas esquecem a dependência econômica e subordinação negocial estrita com os interesses ingleses, via portos de escoamento no Prata (Montevideo e Buenos Aires). 

[Das relevantes realizações modernizantes do castilhismo-borgismo foram a estatização e incremento do porto de Rio Grande, bem como a encampação das ferrovias controladas por capitais europeus, de forma a dotar o estado de infraestrutura e fomentar o desenvolvimento, sem depender do Rio ou do Prata.]   

A grande data a comemorar no Rio Grande do Sul, pelo lado do senso comum, é o 20 de Setembro, que marca o início da insurreição farroupilha (é um equívoco chamá-la de “revolução”, uma vez que os rebeldes foram derrotados pelo Império e não ocorreu nenhuma modificação política, social ou econômica na província sulina depois de 1º de março de 1845, na chamada Paz de Ponche Verde). No entanto, se houve revolução no sentido rigoroso e clássico do termo, esta ocorreu a partir da promulgação da Constituição Rio-Grandense, e da posse do governador (então, presidente do Estado) Julio de Castilhos, no dia 14 de julho de 1891. Meses depois, os conservadores e latifundiários alijados do poder, eternos aliados e sustentáculos da Monarquia, deram início à luta armada contra os jovens que governavam o Rio Grande (Castilhos tinha 30 anos quando assume a presidência do estado). A partir da revolução cruenta, se inicia um processo de grandes modificações e modernizações no RS. Em 1902, já com Borges de Medeiros no poder, depois da morte precoce de Castilhos, o estado passou a tributar com impostos progressivos as terras privadas, bem como reaver dos estancieiros as imensas glebas públicas apropriadas ilegalmente durante todo o século 19.
    
A hegemonia política do castilhismo-borgismo perdura até a década de 1930. Getúlio Vargas foi presidente do estado de 1928 a 1930, quando sai para o Catete, e já deixa um governo mais conciliador com os conservadores da Campanha.

É intrigante, pois, que a apropriação do imaginário social tenha se dado pelo lado dos conservadores, através do simbolismo inventado do 20 de Setembro, e não pelas forças burguesas, progressistas e renovadoras do Rio Grande do Sul, que seria pelo 14 de Julho.
                  
Eric Hobsbawn e Terence Ranger que estudaram o fenômeno da chamada “invenção das tradições” suspeitam que quando ocorrem mudanças sociais muito bruscas e profundas, produzindo novos padrões com os quais essas tradições são incompatíveis, inventam-se novas tradições e novos imaginários de identidade social e cultural. Para os dois autores britânicos, a teoria da modernização pode sim conceber que as mudanças operadas pela infraestrutura da sociedade demandem tradições inventadas no plano da superestrutura.

Neste sentido, a revolução burguesa positivista-castilhista de inspiração saint-simoniana, introdutora do Estado-Providência, mobilizou somente as instâncias da infraestrutura (base material e econômica), deixando uma vasta lacuna, um boqueirão ideológico, diríamos, na esfera da superestrutura. 

Assim, teria restado um formidável vácuo em distintos setores da vida social e no espírito dos indivíduos, como nas artes, no pensamento político, no Direito, na identidade, nas subjetividades individuais e de grupos, na cultura e no imaginário como um todo. O homem é, antes de tudo, um animal simbólico, e este domínio da razão e da cultura foi deixado vago, motivado, talvez, pelas duras urgências da vida real, mas também – suspeito eu – pelo próprio autoritarismo do poder estendido do castilhismo-borgismo.

O tradicionalismo seria, assim, um desagravo mítico-ideológico dos derrotados de 1893/95, os mesmos derrotados de Ponche Verde. Uma vingança de classe – a do latifúndio subalterno e associado – contra a modernização burguesa do positivismo pampeiro, seria isso? Uma maldição contra o futuro do Rio Grande? “Vocês estarão condenados a viver no passado, em meio à fumaça e o cheiro de esterco, festejando derrotas, e considerando heróico, cavalgando durezas e incomodidades, e considerando genuíno, fruindo uma arte primária e mambembe, e considerando autêntico, cultuando velhos ressentimentos e considerando lúcido, ignorando o rico mosaico cultural da província e considerando o tradicionalismo de matriz latifundiária como a síntese de tudo. Vocês são os gaúchos, velhos vagabundos redimidos, são os heróis de um passado que nunca existiu” – foi a sentença de fogo dos que trouxeram o tradicionalismo como vanguarda do atraso no pensamento guasca.              
Redator: Cristóvão Feil - Data: 20.9.11

terça-feira, 20 de setembro de 2011

A Guerra dos Farrapos e seus Lanceiros Negros Traídos

HEMERSON FERREIRA
Professor de História - hemersonfer@bol.com.br

Um breve resumo de como os Farroupilhas sulistas recrutaram e depois descartaram seus soldados negros


Durante a chamada Guerra dos Farrapos no Rio Grande do Sul (1835-45), quando um homem livre era chamado a servir tanto nas forças rebeldes quanto nas imperiais, podia enviar em seu lugar (ou no lugar de um filho seu) um de seus trabalhadores escravizados. Em alguns casos, o alforriavam e alistavam. Também foi prática comum buscar atrair ou tomar cativos das tropas inimigas, trazendo-os para seu lado. O primeiro exército a utilizar negros escravizados como soldados foram os imperiais. Precisando também formar uma infantaria e sobretudo preferindo enviá-los como bucha-de-canhão, morrendo na frente em seu lugar, farrapos também os alistaram: eram os famosos Lanceiros Negros. Ambos, farrapos ou imperiais, prometiam também liberdade aqueles que desertassem das tropas rivais, mudando de lado.

A maioria dos cativos que combateu nesta guerra foi obrigada a fazê-lo diante das condições impostas. Por outro lado, apesar da guerra ser horrível e violenta, era até preferível a vida militar, com seus esporádicos combates, do que as agruras diárias da escravidão. A promessa de liberdade após o fim da luta certamente pode ter influenciado em muito o recrutamento daqueles homens. Uma promessa, aliás e como veremos, jamais cumprida.

Não havia igualdade nas tropas farroupilhas, muito menos democracia racial. Negros e brancos marchavam, comiam, dormiam, lutavam e morriam separadamente. Os oficiais dos combatentes negros eram brancos, e jamais um negro chegou a um posto significante, mesmo que intermediário, de comando. Aos Lanceiros Negros era vedado o uso de espadas e armas de fogo de grande porte. Não lutavam a cavalo, como costumam mostrar nos filmes e mini-séries de TV, mas sim a pé, pois havia o risco de se rebelar ou fugir. Sua arma principal era a grande lança de madeira que lhes deu nome e fama, algumas facas, facões, pequenas garruchas, os pés descalços, a bravura e o anseio pela liberdade prometida.

Seria anacronismo se quiséssemos que líderes farroupilhas tivessem um comportamento ou posições políticas avançadas e assim diferentes das existentes em seu tempo, mas defesa da Abolição da escravidão era bem conhecida e nada alienígena na época. Uma Abolição começou a ser decretada em Portugal em 1767, proibindo que fossem enviados para o reino mais cativos vindos da África, e em 1773 foi decretada uma Lei do Ventre Livre naquele país. Na Dinamarca, isso se deu em 1792. Na França, em 1794 (ainda que Napoleão tenha tentado restabelecer a escravidão no Haiti em 1802). No México, uma primeira tentativa de Abolição foi feita em 1810, mas foi finalmente vitoriosa em 1829. Bolívar libertou cativos em 1816-7, durante suas lutas por independência, e finalmente aboliu a escravatura em 1821. A Inglaterra, que havia findado a escravidão pouco antes da Revolta dos Farrapos, pressionava o Brasil pelo fim do tráfico negreiro desde 1808. Willian Wilbeforce, um dos maiores abolicionistas da história, morreu em 1833, ou seja, dois anos antes da guerra no Sul do Brasil. Farrapos, portanto, conheciam, sim, e muito bem o abolicionismo.

Entretanto,os principais chefes farrapos, Bento Gonçalves, Canabarro, Gomes Jardim e até Netto, dentre outros, eram todos ferrenhos escravistas. Quando aprisionado e enviado para a Corte no Rio de Janeiro, Bento Gonçalves teve o direito de levar consigo um de seus cativos para lhe servir. Ao morrer, o mais conhecido líder farroupilha deixou terras, gado e quase cinqüenta trabalhadores escravizados de herança aos seus familiares. Bem diferente do que fizera Artigas no Uruguai anos antes, os farrapos jamais propuseram uma reforma agrária ou mesmo uma distribuição de terras entre seus soldados, mesmo os brancos pobres, que dirá os negros. A defesa da escravidão era tão clara entre os chefes farrapos a ponto deles jamais sequer terem mencionado o fim do tráfico negreiro.

Ao fim da guerra e já quase totalmente derrotados, os farrapos incluíram entre suas exigências para o Império o cumprimento da promessa de liberdade que haviam feitos aos Lanceiros (principalmente porque temiam que eles formassem uma guerrilha negra na província já que a quebra da promessa os faria se rebelar ou fugir para o Uruguai, destino comum de diversos cativos fugitivos na época). Queriam entregar-se ao Império, acabar a guerra, voltar à normalidade, mas tinham os Lanceiros e a promessa que lhes haviam feito, e o Império, escravista até a medula, não queria cumprir essa parte do acordo.

Que fazer então? A questão foi resolvida na madrugada de 14 de novembro de 1844, quando o general farrapo David Canabarro entregou seus Lanceiros desarmados ao inimigo, tudo previamente combinado com Caxias. E no serro de Porongos, hoje região de Pinheiro Machado (interior do Rio Grande do Sul), foi dizimada quase toda a infantaria negra, enterrando de vez a preocupação dos farrapos e acelerando assim a paz com o Império. A instrução de Caxias a um de seus comandados foi clara e objetiva: a batalha teria que ser conduzida de forma tal que poupar apenas e dentro do possível o sangue de brasileiros (e o negro era então tratado como africano, mesmo que já nascido no Brasil).

Alguns historiadores apologistas ou folcloristas de CTGs consideraram aquela traição como Surpresa, já que pela primeira vez que o então vigilante Davi Canabarro teria sido surpreendido pelo inimigo. Conversa fiada! Enquanto dispôs suas tropas negras de tal maneira que ficassem desarmadas e descobertas, algo que até então nunca havia feito, Canabarro se encontrava bem longe e seguro do local, nos braços de Papagaia, alcunha de uma amante sua.

Após o combate, um relato oficial avisou a Caxias que pelo menos 80% dos corpos caídos no campo de Porongos eram de homens negros. Calcula-se que, nos últimos anos daquela conflito, os farrapos ao todo somavam uns cinco mil homens, sendo que algo em torno de mil eram Lanceiros Negros. Após o Massacre de Porongos, porém, restaram apenas uns 120 deles, feridos, alguns mutilados, e que foram primeiramente enviados para uma prisão no centro do país e depois dispersados para outras províncias, ainda mantidos como cativos.

Feito isso, deu-se a chamada rendição e paz do Poncho Verde, onde senhores escravistas dos dois lados trocaram abraços e promessas de lealdade e, logo depois, marcharam juntos e sob a mesma bandeira imperial contra o Uruguai, Argentina e Paraguai.

Bibliografia

FACHEL, José Plínio Guimarães. Revolução Farroupilha. Pelotas: EGUFPEL, 2002.

FERREIRA, Hemerson. Da Revolta à Semana Farroupilha: entre tradição e a história. http://prod.midiaindependente.org/en/blue/2009/08/451359.shtml

FLORES, Moacyr & FLORES, Hilda Agnes. Rio Grande do Sul: aspectos da Revolução de 1893. Porto Alegre: Martins-Livreiro, 1993.

GOLIN, Tau. Bento Gonçalves, o herói ladrão. Santa Maria: LGR, 1983.

LEITMAN, Spencer. Raízes sócioeconómicas da Guerra dos Farrapos: um capítulo da história do Brasil no século XIX. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

MAESTRI, Mário. "O negro escravizado e a Revolução Farroupilha". In: O escravo gaúcho: resistência e trabalho. Porto Alegre: UFRGS, 1993, pp76-82.

domingo, 1 de maio de 2011

O tradicionalismo guasca que esterca as cidades na primavera: a imaterialidade da coisa

TAU GOLIN
Jornalista e historiador

Algo assustador vem ocorrendo gradativamente no Rio Grande do Sul. Um movimento de pressão política e cultural está em vias de subverter completamente o princípio do patrimônio imaterial.

O Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) deseja ser o elemento dessa aberração.

Por óbvio, se poderia considerar “patrimônio imaterial” manifestações culturais, mas não a “entidade” que as promove. Considerar o tradicionalismo, que é uma sociedade privada, organizada na sociedade civil, como “patrimônio imaterial” seria a mesma coisa que reconhecer o Grêmio ou o Internacional como únicas manifestações genuínas e autênticas do futebol. Certamente, se um clube sumir isso não afetará a existência do esporte.

O tradicionalismo é um movimento cívico-cultural organizado em rede, de forma associativa, e de caráter de massa, articulado pela indústria cultural e diversos interesses comerciais, políticos, etc., que, além de milhares de posturas sinceras, especulam com hábitos, costumes e elementos da tradição. Não existe imaterialidade no tradicionalismo. Duvidosamente, a imaterialidade poderia ser encontrada em algumas manifestações utilizadas pelo movimento, entretanto reinterpretadas, agregadas por sentidos contemporâneos, sem sustentação metodológica. Portanto, ainda assim, de forçosa “imaterialidade”. A seleção, a reinterpretação, a reorganização, e o novo sentido agregado, adequado aos interesses do movimento, retiram a sua “imaterialidade”. O motivo: não é mais autêntico; foi tradicionalizada.

Desde os anos 1940, o tradicionalismo vem privatizando uma série de manifestações culturais, hábitos e costumes rio-grandenses. Muitos existiam isolados em regiões remotas. Da tradição foram retirados e reelaborados em uma engrenagem de rede. Um eficiente marketing e práticas de adestramento comportamental encarregaram-se de “educar” os contingentes como se pertencessem a todos os grupos humanos. E o que é pior: como se o RS tivesse um único gentílico formatador gauchesco.

Praticamente todas as manifestações adotadas pelo tradicionalismo já existiam antes do seu aparecimento como entidade privada. Se o tradicionalismo, por sua vez, desaparecer, as realmente importantes continuarão existindo. Patrimônio imaterial é o mate (legado indígena), a culinária, determinadas músicas e danças regionais, etc., e não o tradicionalismo.

Com o sucesso de se transformar em “patrimônio imaterial”, o tradicionalismo chegou ao extremo de sua usurpação da riqueza cultural regional. Ele se converte em “único”, “legítimo” portador dos eventos da identidade. Ele passou a ser o próprio fenômeno. Parece evidente que esta nova expropriação não resiste à História e ao contrato republicano da sociedade contemporânea. A imanência tradicionalista o conduziu à crença de que ele é, em essência, a coisa...

Nessa lógica, a “cidadania” ainda será acusada de crime contra o patrimônio se realizar qualquer crítica a um tradicionalista (em essência, a coisa imaterial), protestar contra seus hábitos de estercar as cidades nos meses de setembro; espancar animais nos rodeios; ou o poder público ficará impossibilitado de realizar alguma reforma urbana porque em determinado lugar existe um galpão com uma placa tosca na fachada escrito CTG, cujas atividades são de duvidoso interesse público.

Passando à imaterialidade, só falta agora o tradicionalismo almejar ser o espírito do rio-grandense.