Escrito por Mário Maestri | |
26-Mar-2007 | |
http://www.correiocidadania.com.br/content/view/36/ Apesar da função germinal que a fazenda pastoril desempenhou na origem e no desenvolvimento da formação social sulina, não dispomos de sequer uma história geral da estância no Rio Grande, ao contrário do Uruguai e da Argentina, onde abundam valiosos trabalhos sobre o tema. Guilhermino César, último grande expoente da historiografia tradicional sulina, esboçou uma primeira leitura geral da estância sem jamais concluir o trabalho, publicado postumamente – A origem da economia gaúcha: o boi e o poder [Porto Alegre: IEL, 2005.]
Esse paradoxo manteve-se apesar da abundância da documentação; da qualidade e da quantidade dos estudiosos; dos paradigmas interpretativos sobre a estância construídos pela historiografia platense. A história da fazenda no Sul permaneceu como uma espécie de caixa de Pandora, mantida cuidadosamente cerrada. São múltiplas as razões de tal esquisitice historiográfica. Como no Plata, os mitos da democracia pastoril e da produção sem trabalho são também bases constitutivas das explicações apologéticas do passado sulino. O Sul divide com aquelas regiões a apologia das virtudes democráticas dos latifúndios, da produção pastoril sem trabalho, da ocupação pelo colonizador de terras sem donos, de civilização assentada na destemidez do gaúcho, trabalhador livre que jamais conheceu a opressão de classe.
Entretanto, ao contrário dos pampas platenses, o Rio Grande possuiu economia e sociedade fortemente apoiadas no trabalho escravizado. Realidade negada ou minimizada pelos intelectuais orgânicos da sociedade liberal-pastoril, inicialmente, e positivista-industrial, a seguir, apesar de os levantamentos populacionais dos séculos 18 e 19 registrarem o volume e a expansão absoluta da mão-de-obra cativa no Sul, além do fim do tráfico transatlântico, em 1850-2. Uma produção escravista sulina que envolveu em forma significativa, ainda que não exclusiva, a própria economia pastoril.
Em geral, mesmo quando a historiografia sulina reconheceu alguma importância ao trabalho escravizado, esforçou-se em reafirmar a fazenda pastoril ou, ao menos, as práticas pastoris propriamente ditas como esferas de intervenção exclusivas do trabalhador livre – o gaúcho. A população escravizada registrada nas fazendas trabalharia exclusivamente nas atividades não-pastoris domésticas e mais pesadas – horta, transporte, construção etc. O cativo campeiro, presença constante nas fazendas pastoris médias e de maior porte, foi tradicionalmente ignorado.
Gaúcho nem sempre é peão
Nos fatos, essa visão historiográfica apologética já confundia comumente a categoria profissional peão-peón, assalariado livre das fazendas pastoris do sul da América, com o gaúcho-gaucho, categoria étnico-social constituída sobretudo por descendentes ou mestiços de charruas e guaranis que perambulavam nos pampas argentinos, uruguaios e rio-grandenses, empregando-se, eventualmente, como peões. Nos fatos, o gaúcho nem sempre foi um peão, assim como peão não era, necessariamente, um gaúcho.
A elucidação das razões da utilização do cativo nas práticas criatórias, mão-de-obra relativamente cara considerando-se a baixa rentabilidade da criação animal, quando existiam gaúchos hábeis nas lides do campo, constituía também dificuldade metodológica na solução dessa verdadeira charada historiográfica. A superação dessa contradição aparente exigia a compreensão da disponibilidade apenas aparente do trabalhador livre e que se identificassem as razões histórico-estruturais do caráter subordinado do mercado de trabalho livre no Sul, ao igual de que ocorria no resto do Brasil.
Até os últimos tempos da escravidão, os campos sulinos não foram plenamente apropriados e cercados e o gaúcho detinha parcialmente os instrumentos – cavalos, arreios etc. – necessários à produção furtiva ou semi-furtiva, em geral intermitente, de seus meios de subsistência. O que dificultava sua metamorfose plena em peão, trabalhador pastoril assalariado, obrigado pela necessidade econômica a vender permanentemente sua força de trabalho a preço vil. Nessas condições históricas, o trabalho coato ou semi-coato impunha-se como uma importante relação de trabalho na produção pastoril, ainda que não assumisse o caráter quase exclusivo, como ocorria nas atividades mais duras, como as charqueadas, monocultura exportadora etc.
A própria fantasia apologética sobre as condições de existência singularmente positivas do gaúcho-peão, identificado de fato ao fazendeiro, reafirmada pela historiografia tradicional, dificultava a compreensão da incapacidade dessas categorias sociais de reproduzir-se vigorosamente, criando população excedente capaz de substituir abundantemente a mão-de-obra escravizada, quando subsistissem as condições para tal. O padrão de existência do gaúcho-peão rio-grandense no século 19 e começos do século 20 exige estudo como o desenvolvido por Laudelino Medeiros, para os anos 1960, em “O peão de estância: um tipo de trabalhador rural” [Porto Alegre: Instituto de Estudos e Pesquisas Econômicas da UFRGS, 1964].
O fazendeiro nos panos do gaúcho
O deslocamento geográfico do célebre monumento do Laçador, na entrada de Porto Alegre, centrou os holofotes da mídia regional nesse registro exemplar da ocultação do rosto triste do gaúcho-peão, herói anônimo do mundo do trabalho do passado sulino, através da projeção sobre sua representação da imagem idealizada do fazendeiro, seu antípoda social.
Em 1954, as celebrações do quarto centenário de São Paulo ensejaram concurso para a produção de escultura representativa do homem sulino, a ser exposta, junta a outras estátuas de homens-tipo brasileiros, no parque do Ibirapuera, inaugurado quando do evento. Participaram do certame artistas conhecidos como Antônio Caringi, Fernando Corona, Vasco Prado, que apresentaram cinco projetos, em modelos reduzidos – “Posteiro”, “Boleador”, “Bombeador”, “Peão da Estância” e “Gaúcho Farrapo”.
A comissão avaliadora, da qual participava o jovem tradicionalista Paixão Cortes, decidiu em favor de Antônio Caringi (1905-1981), natural de Pelotas, antigo centro charqueador-escravista, que substituiu as boleadeiras por laço, ensejando a nova denominação do seu projeto. Modelada em barro e a seguir em gesso, para ser eventualmente fundida e doada após a exposição à municipalidade de São Paulo, a estátua retornou ao Sul, permanecendo semi-esquecida em depósito da capital até ser retirada do olvido, para ser fixada em bronze, por ordem de Leonel Brizola, então prefeito da capital [1954-8].
Em 20 de setembro de 1958, data magna das celebrações farroupilhas, a majestosa estátua – quatro metros e meio de altura, quatro toneladas de peso – era plantada na confluência das avenidas Farrapos e Ceará, na mais nobre entrada de Porto Alegre, nas proximidades do aeroporto Salgado Filho, símbolo da modernidade pretendida pela metrópole sulina. A obra alcançou rápido sucesso. Em 1991, era escolhida em consulta promovida pelo Banco Itaú-RBS como símbolo da capital, decisão homologada pela Câmara dos Vereadores, no ano seguinte, e, em 17 de setembro de 2001, era tombada pelo patrimônio como monumento histórico. Antes dessas distinções, já era motivo sempre presente nos cartões de viagens, prospectos e alegorias sobre a capital e o estado.
Brigadianos e cetegistas
Em 11 de março de 2007, quando se preparava para celebrar meio século guardando a entrada de Porto Alegre, o Laçador foi transferido, pajeado pela Brigada Militar e cavalaria cetegista, sob o som do hino rio-grandense e de canções tradicionalistas, para seiscentos metros de distância, na avenida dos Estados, próximo à estação da Trensurb e ao antigo terminal do Aeroporto Salgado Filho, devido às obras do viaduto Leonel Brizola.
O deslocamento da estátua do eixo central da visão dos que chegam à capital pela BR-116 obrigou sua colocação sobre pequena elevação em terra, batizada em forma grandiloqüente de “Coxilha do Laçador”. Durante todo o processo, as autoridades municipais consultaram os vates tradicionalistas, temerosas de incorrerem impensadamente em alguma profanação.
Nada na estátua monumental fixa plasticamente o peão-gaúcho, descendente do pampiano ou missioneiro ou, menos ainda, o cativo campeiro, presença constante nas grandes estâncias. O Laçador constitui negação do olhar, do porte e, sobretudo, do corpo do gaúcho-peão, corpo dolorosamente esculpido por existência de trabalho duro e perambulação sem fim em campos que haviam sido, mas já não eram mais seus.
Os traços somáticos europeus, a postura dominadora, os trajes de manequim empertigado para foto oficial anulam a representação do gaúcho-peão real, ao projetar sobre ela a imagem mitificada do fazendeiro luso-descendente, que se apropriou, sem dó, da terra que pisou e dos trabalhadores que a exploraram. O Laçador volta as costas ao gaúcho-peão real, materializando-se como representação de herói imaginário produzida com as reconstruções do presente sobre passado pastoril mítico estranho às necessidades e contradições sociais. Uma operação cultural-ideológico que se deu paradoxalmente sem mediações.
Super-heróis rio-grandenses
Autor de outras esculturas áulico-monumentais, como o “Imigrante”, em Caxias do Sul; o “Soldado Farroupilha”, em Pelotas; “Bento Gonçalves” e o “Expedicionário”, em Porto Alegre, Caringi não se inspirou na iconografia e na documentação história ou, melhor ainda, no trabalhador pastoril de sua época, explorado e sofrido, descendente sociológico do gaúcho-peão que prometia retratar.
O Laçador teve, ao contrário, como modelo e conselheiro histórico, Paixão Cortes, descendente de lusitanos e servidor produtivo e imaginativo da fazenda, como engenheiro-agrônomo e como fundador do movimento de apologia do mundo pastoril-latifundiário, que posou e aconselhou o artista, vestido de trajes folclorizados de gaúcho, no conforto de sua residência da capital.
O próprio Paixão Cortes registrou a estranha gênese do Laçador: “[...] um dia eu estou lá em casa e batem na porta. Era o Caringi, que [...] me pediu se poderia conseguir um traje de gaúcho [...]. Eu disse que só tinha o meu, então ele pediu se eu poderia vestir. Eu vesti e ele foi fazendo desenhos [...]. Ele [...] voltou várias vezes e eu sempre colocava o traje e nós debatíamos o que seria” [Melhor Idade, 15.02.07]. Por esse seu pecado, durante toda a vida, Caringi amargou o amplo conhecimento popular do modelo e a quase ignorância do produtor da mais célebre escultura rio-grandense.
Mário Maestri é professor do curso e do programa de pós-graduação em História da UPF. E-mail: maestri@via-rs.net |
"Hay hombres que luchan un dia y son buenos
Hay otros que luchan um año y son mejores
Hay quienes luchan muchos años y son muy buenos
Pero hay los que luchan toda la vida
Esos son los imprescindibles"
(Bertolt Brecht)
sexta-feira, 9 de janeiro de 2009
O Gaúcho e seu Avesso
quinta-feira, 8 de janeiro de 2009
A crise gaúcha. A erosão da ética republicano-castilhista. Entrevista especial com Mário Maestri
“A crescente subjunção da economia sulina ao grande capital global, e a dissolução do tecido socioeconômico tradicional rio-grandense, no contexto de grande fragilidade do movimento social, erodiram objetiva e subjetivamente o que poderíamos chamar de ética republicano-castilhista, equiparando as práticas políticas regionais às do resto do Brasil. Agora, faz-se política para enriquecer, legal ou, mais e mais, ilegalmente.” A opinião é do historiador gaúcho Mário Maestri, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Ele ainda afirma que a “identidade inventada” do gaúcho “sufoca as identidades nascidas das experiências sociais profundas, como as do mundo do trabalho urbano, rural, servil etc.”. Mário Maestri é graduado em Ciências Históricas, pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica, onde também realizou mestrado e doutorado na mesma área. Em 1991, fez o pós-doutorado na mesma universidade. Atualmente, é professor da Universidade de Passo Fundo. É autor de Uma história do Rio Grande do Sul: a ocupação do território (Passo Fundo: UPF Editora, 2006), O escravo no Rio Grande do Sul: trabalho, resistência, sociedade (Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006) e Antonio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário (São Paulo: Expressão Popular, 2007), entre outros. De Mário Maestri, publicamos os Cadernos IHU no. 6 ("Gilberto Freyre: da Casa-Grande ao Sobrado. Gênese e Dissolução do Patriarcalismo Escravista no Brasil), no. 13 ("O escravismo colonial: a revolução copernicana de Jacob Gorender. A gênese, o reconhecimento, a deslegitimação"), no. 17 ("As Sete Mulheres e as Negras sem Rosto: Ficção, História e Trivialidade"), e no. 74 ("Raça, nação e classe na historiografia de Moysés Vellinho"). Todas as edições estão disponíveis neste sítio para download. Confira a entrevista. IHU On-Line - Podemos perceber elementos da trajetória histórica da política gaúcha na crise do governo do estado rio-grandense?
Mário Maestri - Ao contrário do resto do Brasil, no Rio Grande do Sul, a República promoveu o defenestramento das oligarquias pastoris por um novo bloco pró-capitalista castilhista-borgista que literalmente refundou o Estado regional, em um processo já definido como verdadeira “revolução passiva”, no sentido gramsciano. Ou seja, realizou reforma democrático-burguesa – controlada, conservadora e limitada – da sociedade, à margem da participação popular. Um processo possível devido à diversificação crescente, desde 1824, do perfil socioeconômico latifundiário-pastoril, devido à ação de dinâmica colonização de pequenos camponeses proprietários. Este processo ensejou uma gestão político-administrativa regional diferenciada dos estados dominados pela oligarquia agrária. IHU On-Line – Qual é o espaço e o papel da ética política no Rio Grande do Sul de hoje? Mário Maestri - Como assinalado, ao contrário da maior parte do Brasil, o Sul conheceu verdadeira brecha colonial-camponesa na ordem latifundiária. O que ensejou sociedade, ao menos no início, tendencialmente democrática, onde praticamente todos os colonos-camponeses possuíam terra para trabalhar com seus braços. A economia, a disciplina e o respeito ao cidadão eram valores dessa sociedade apoiada na produção familiar, que valorizava o trabalho individual, abominado pelo escravismo oligárquico. A própria industrialização sulina nasceu, sobretudo, de pequenas unidades familiares. Esses valores plebeus determinaram e influenciaram o comportamento político. Grandes políticos republicanos, como Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, Getúlio Vargas e Leonel Brizola, foram acusados – e não sem razão – de enorme apego ao poder, mas jamais foram taxados de desonestos. A crescente subjunção da economia sulina ao grande capital global, e a dissolução do tecido socioeconômico tradicional rio-grandense, no contexto de grande fragilidade do movimento social, erodiram objetiva e subjetivamente o que poderíamos chamar de ética republicano-castilhista, equiparando as práticas políticas regionais às do resto do Brasil. Agora, faz-se política para enriquecer, legal ou, mais e mais, ilegalmente. IHU On-Line - Os movimentos sociais estariam fragilizados, hoje, em relação aos anos 1980? Mário Maestri - Após a grande derrota de 1964 e quinze anos de ditadura militar, o movimento social sulino e brasileiro conheceu, em 1979, verdadeira explosão das lutas sindicais e pela democratização da posse da terra. Apenas muito parcialmente vitorioso nas suas reivindicações materiais, esse movimento ensejou grande vitória política com a fundação do PT (1980), da CUT (1983), então com orientações socialistas e classistas, e do MST (1984). Esses foram também os anos da luta pela anistia e pelas eleições diretas, que não conseguiram, entretanto, impor a punição dos criminosos da ditadura e as eleições diretas. Nos anos seguintes, o mundo do trabalho conheceu duas décadas de depressão econômica tendencial, agravada pela vitória da contra-revolução neoliberal em fins dos anos 1980, desastre de proporções históricas. Esse processo determinou enorme desorganização do movimento popular e cooptação dos partidos e das direções políticas, sindicais e sociais populares para a colaboração com o capital. Como assinalado, a política passou a ser simples meio de progressão social individual, lícita ou ilícita. Destaque-se que essa forma de enriquecimento se espraiou horizontalmente na esfera do executivo e legislativo, municipal, estadual e federal, garantindo ganhos pequenos, médios e literalmente abismais. IHU On-Line - Como avalia a postura do governo do Rio Grande do Sul em relação aos movimentos sociais? O que essa repressão significa?
Mário Maestri - Yeda Crusius elegeu-se com a conjunção da votação conservadora sulina com parte do eleitorado popular desgostoso com o governo Olívio Dutra, do PT, e Germano Rigotto, do PMDB. Sem projeto autonômico para o estado, propõe-se simplesmente facilitar a transferência para privados de recursos públicos; privatizar empresas estaduais e atrelar mais estreitamente a sociedade regional ao grande capital. Todos esses objetivos (liliputização do Estado; corte de investimentos; alienação acionária do Banrisul; facilitação selvagem do agronegócio etc.) exigem a quebra da resistência do professorado, do funcionalismo público, do movimento dos camponeses sem terra. Com a exposição da corrupção do governo, reconhecida como prática normal por Cézar Busatto, chefe da Casa Civil, e acusações diretas à probidade pessoal da governadora, para o governo Yeda Crusius, destruir o movimento social, de projeto estratégico, tornou-se meio para a rápida reconstrução-consolidação de apoio, sobretudo pelo latifúndio e grandes capitais interessados na celulose e bioenergia. Segmentos que sabem remunerar em forma magnânima seus prepostos. IHU On-Line - A sociedade gaúcha sempre foi politizada. Como agiram suas chamadas elites?
Mário Maestri - O Rio Grande do Sul já foi região econômica e socialmente poderosa. Suas classes proprietárias desempenharam papel determinante na Independência, participando desde o início do “Conselho de Procuradores Provinciais”; os grandes criadores do meridião sustentaram longa guerra contra a Corte; na República Velha, o Rio Grande do Sul jamais conheceu intervenção federal, liderando a Revolução de 1930. Porém, nos últimos oitenta anos, o Estado conheceu depressão tendencial, relativa ou absoluta, já que à margem de desenvolvimento capitalista, primeiro nacional, a seguir mundial, centrado no RJ-SP. Hoje o Rio Grande do Sul é um arremedo do que foi no passado. Nesse longo período, apenas dois governantes ensaiaram projeto de desenvolvimento autonômico regional: Flores da Cunha, em 1930-37, defenestrado por Vargas, representante do capital nacional hegemônico do RJ-SP; e Leonel Brizola, em 1959-63, rejeitado pelas próprias classes proprietárias sulinas que, após 1937 e 1964, adaptaram-se sem pruridos ao papel de gestores subordinados ao centro hegemônico, registrando assim incapacidade histórica de acaudilhar a região. O grande problema é que as classes trabalhadoras mostraram-se até agora incapazes de levantar projeto alternativo para o Rio Grande do Sul e o Brasil. IHU On-Line - Como o gaúcho contemporâneo se relaciona com a política? Mário Maestri - A politização da população sulina insere-se no processo apenas assinalado de crise regional. Na Colônia e no Império, a ação social coletiva das classes subalternizadas foi quase nula, já que se mostraram incapazes de articular-se em forma autônoma. Na República Velha, um importante ativismo operário, capitaneado pela gloriosa FORGS, centrado, sobretudo, em Porto Alegre, não conseguiu espraiar-se para as regiões coloniais e para a Campanha, região que jamais conheceu movimentos coletivos. A população pobre e trabalhadora jamais conseguiu servir-se dos confrontos de 1835-45, 1893-5, 1923, 1930, 1932, para fazer avançar seus interesses. O que não quer dizer que a solução daqueles conflitos não lhes dissesse respeito. Talvez à exceção de 1961, a politização rio-grandense expressou-se, sobretudo, no plano político-eleitoral. A partir de 1969, o Sul conheceu ativismo sindical, sobretudo metalúrgico, bancário, dos trabalhadores rurais sem terra e, com destaque, dos professores públicos estaduais. Atualmente, apenas os dois últimos setores mostram vitalidade. IHU On-Line - Considerando a identidade gaúcha, como o povo do Rio Grande do Sul se define hoje? Quem é o gaúcho contemporâneo?
Mário Maestri - As identidades nacionais e regionais são geralmente construções das classes dominantes para a gestão política, ideológica, social e econômica dos subalternizados de um território. O gaúcho foi trabalhador pastoril nascido da dispersão das comunidades guaranis, charruas etc., devido à privatização dos territórios comunitários. Em relação à Argentina e ao Uruguai, o gaúcho desempenhou papel menor na economia pastoril sulina, devido ao forte desempenho do cativo campeiro. Porém, foi no Rio Grande do Sul onde se entranhou mais profundamente a identidade gaúcha entre comunidades sem relações com gaúcho histórico e o mundo latifundiário-pastoril, como os operários, classes médias urbanas e, sobretudo, descendentes de camponeses alemães, italianos, poloneses etc. Essa identidade inventada sufoca as identidades nascidas das experiências sociais profundas, como as do mundo do trabalho urbano, rural, servil etc. IHU On-Line - Que tipo de reflexão a atual crise política gaúcha lhe desperta?
Mário Maestri - O Rio Grande do Sul vive hoje sob o signo da banalização da corrupção pública e da literal criminalização da oposição popular, através de ataque direto ao direito de manifestação dos trabalhadores sem terra, registros indiscutíveis da decomposição estrutural das práticas tradicionais da política republicana sulina. Realidade que não enseja resposta substantiva da chamada sociedade civil ou do mundo político regional, preocupado este último essencialmente com as próximas eleições. Trata-se de processos subjetivos nascidos das transformações substanciais e perversas da organização social rio-grandense, parte do processo de literal barbarização social do Brasil, que tende a pôr em xeque o próprio ordenamento democrático e institucional formal que ainda conhecemos. Processo perverso exemplificado paradigmaticamente no tratamento militar criminoso da população trabalhadora do morro da Providência no Rio de Janeiro. | |
terça-feira, 6 de janeiro de 2009
50 ANOS DEPOIS... O mesmo desafio de fazer a Revolução
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