Palavras do historiador Luiz Carlos Golin, o Tau Golin, em entrevista ao TUTAMÉIA. Professor da Universidade de Passo Fundo e autor de vários livros sobre a história gaúcha (como “A Ideologia do Gauchismo” e “A Guerra Guaranítica”), ele falou sobre o protesto da bancada negra na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, que, no dia da posse, em 1° de janeiro de 2021, se negou a cantar o hino gaúcho. Um dos versos diz: “Povo que não tem virtude, acaba por ser escravo”.
“O silêncio desses vereadores é de uma nobreza, de uma virtude espetacular. Silenciaram na sonoridade desse hino abjeto, anticivilizatório. A presença desse mundo injusto, racista, prepotente, soberbo, muitas vezes bagaceiro e violento veio à tona. É como se a civilização colocasse um distanciamento, olhasse para essa coisa aterrorizante, cuja sinfonia é a marcha do terror desse hino”, diz.
Nesta entrevista, Tau Golin trata da Guerra dos Farrapos, da trajetória política do Rio Grande do Sul e da construção da cultura do tradicionalismo gaúcho _que ganhou corpo com a expansão da indústria cultural, em meados do século 20. Descontrói mitos e revela a manipulação das classes dominantes na imposição de uma cultura violenta, machista e racista (acompanhe a íntegra no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
“O Rio Grande do Sul é muito complexo. O dominante que se dá na esfera do Estado, dos meios de comunicação, principalmente no rádio, na tv. É nojento. É uma gente incapaz. São agregados desse imaginário estúpido. Cada rádio no Rio Grande do Sul tem no mínimo seis horas de programação com esse tipo de aberração. O que se mata de gente na música do Rio Grande do Sul! E é carga de lança, é talho de adaga, tiro de garrucha, todo mundo é inimigo. Não há interação com o cavalo. Cavalo se doma na porrada, no relho. Em grande número de canções, as mulheres, se não obedecem aos homens, ajoelham e choram. Eles imaginam cenas de amores e não tiram nem a espora. Esse tipo de coisa, que em qualquer país minimamente sensível, se o sujeito abrisse a boca, era preso por lesa humanidade. Isso tudo transita como manifestações da identidade que forma uma ideia de ethos dominante. É um imaginário que está não só no Rio Grande do Sul, mas fora e que se expressa em algo que espontaneamente se encontra em todo o Brasil: inscrições dizendo fora gaúcho”.
Para Tau Golin, o tradicionalismo está fortalecido, controlando aparelhos de Estado. “É completamente antirrepubicano. Departamentos de Estado têm sua invernada artística. Bancos, quartéis têm galpões. Na ditadura militar os, caras matavam, torturavam, sumiam com a pessoa, espancavam os estudantes, reprimiam a população. Depois, tiravam a farda, botavam a pilcha e iam churrasquear no galpão da sua unidade militar ou em CTGs. É a alienação materializada e arregimentada numa prática permanente anticivilizatória. A hegemonia do tradicionalismo é feita pelos brigadianos, pelos coronéis e oficiais da Brigada Militar. É uma cultura militaresca, miliciana”.
O historiador explica como foi a construção do tradicionalismo, que cria um mito em relação à estância escravocrata, absolutamente hierarquizada, que está introjetado na cultura dominante gaúcha. “Os ideólogos nomeiam as coisas, criam a ideia de espaços, abrangem tudo a partir do latifúndio. Acima do mundo terráqueo, há o céu, que passou a ser chamado a estância do céu. O dono é patrão da estância do céu, o tropeiro que conduz é Jesus Cristo. A prenda é a Virgem Maria”.
Na realidade, antes dessa construção, as mulheres, por exemplo, nunca tinham sido chamadas de prenda. “O tradicionalismo é formado por homens. Onde colocar a mulher dentro dessa visão moral e social? Criam a categoria da prenda. Prenda é penduricalho, adereço, o chaveirinho que o homem carrega, o bibelô, o enfeite, o sujeito sem história. As mulheres populares no Rio Grande do Sul, que advêm das índias, de negros, mamelucos, eram a cabocla e a china. O tradicionalismo faz depurações arbitrárias e as institucionaliza. O menino chega na escola e é chamado de peão; a menina vai se vestir de prenda”.
Segue o historiador: “O Rio Grande do Sul é muito mais complexo do que esse hino, do que o CTG. O CTG é uma unidade de produção, uma propriedade privada, simbolizada culturalmente como modelo de sociedade humana. E uma força repressora e alienante extraordinária. E as pessoas não se dão conta disso. Há uma rusticidade, uma indelicadeza que impossibilita o humano em suas possibilidades de grandeza. São freios e amarras a bandeiras universalistas e civilizatórias”.
Tau aponta a existência de movimentos de resistência a essa cultura autoritária, racista, machista. “Há um Rio Grande do Sul em estado de letargia que se manifesta pontualmente na fronteira, na serra, nas missões, no litoral, nas comunidades quilombolas, nas cooperativas, nas escolas de samba. Há um Rio Grande do Sul prazeroso de se orgulhar. Um exemplo. O número de casas, de instituições afrodescendentes aqui é infinitamente superior ao número de CTGs. Mas elas não têm visibilidade e reconhecimento público”.
Nessa disputa política e cultural, o historiador vê caminhos:
“Esse embate não vai se dar unicamente nesse ambiente do regionalismo. É preciso ter universalidade. O que vai minar [o tradicionalismo] são as bandeiras humanistas, de direitos humanos, as grandes lutas pelos direitos dos indígenas, dos negros, do povo excluído em geral. É a necessidade do plural”.