"Hay hombres que luchan un dia y son buenos
Hay otros que luchan um año y son mejores
Hay quienes luchan muchos años y son muy buenos
Pero hay los que luchan toda la vida
Esos son los imprescindibles"
(Bertolt Brecht)

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

"Não perca tempo com essa grossura, com esses bombachudos, com essa bagualice!"

http://santasaliencia.blogspot.com/2007/04/no-perca-tempo-com-essa-grossura-com.html

Uma entrevista de 80 minutos. Três dias de transcrição de áudio com fala arrastada e músicas de jazz ao fundo. Edição. Aliás, pouquíssima edição.

O que você está pra ler é um entrevistão, resultado de uma conversa “afiada” e franca realizada com o autor de mais de 38 obras sobre a história do Rio Grande do Sul e suas fronteiras. Quem libera o verbo é o professor universitário, jornalista e doutor em História, Luiz Carlos Golin, o Tau.

Abaixo, Tau Golin fala do Manifesto contra o tradicionalismo, que ele escreveu juntamente com um grupo de jornalistas, historiadores, músicos e simpatizantes à causa avessa do Tradicionalismo gaúcho. Conta como virou historiador, fala de sua estada no Grêmio Football Porto-alegrense como centro-médio e opina sobre a “academia” e as universidades.

Entrevistei o historiador e jornalista acompanhada do professor Cleber Nelson Dalbosco, que fotografou o encontro, e também do jornalista Jean Berthier, que foi presentear o professor com a significância singular dos pinhões que crescem e se esparramam ao chão de sua propriedade.

Agora se imagine numa tarde de terça-feira chuvosa, num apartamento no centro de Passo Fundo. Onde estamos há uma sala repleta de livros até o teto. A pintura das quatro paredes são obras de todos os tipos: literárias, de história, de pesquisa, de metodologia e, também, de navegação. Num canto, uma mesa com dois computadores. Um deles sintonizado na rádio Sanborns Radio Jazz, que, bem baixinho, fez a trilha sonora da nossa conversa. Em frente à mesa, dois sofás e uma cadeira. Num sofá de poltrona única, que podemos chamar de “divã”, está Tau Golin.

Tau, de onde surgiu a idéia do Manifesto contra o Movimento Tradicionalista Gaúcho que já circula na Internet?

O Manifesto surgiu com a intenção de dar uma resposta mais articulada, de um ponto de vista republicano, a uma série de medidas e ações concretas que o MTG e os tradicionalistas tomam no cotidiano da vida social, não é?! Então a partir dessa intenção nós reunimos uma série de críticas esparsas de acadêmicos, de professores de história, de repórteres, de jornalistas, de músicos – que são as maiores vítimas do MTG,...né?, de professores que são inibidos na sua atividade de trabalho, por uma ação militante das secretarias e dos secretários de educação e turismo que invadiram as escolas para idiotizar as crianças através de um processo de pilchamento mental. Então reunido todo esse material e estes argumentos que estão em livros, em artigos, em opiniões, em entrevistas nos jornais, etc, nós pegamos todos estes elementos e demos um corpo pra ele; através de uma redação que unificasse essa série de opiniões que existem e, mostrar opiniões que aparecem como uma preocupação do ponto de vista da formação intelectual do Rio Grande do Sul, e o que isso significa do ponto de vista daquilo que nós chamamos de um “caldo de cultura” fundamentalista que não propicia a formação de uma coletividade que tenha uma mentalidade aberta, ilustrada, anti-dogmática.

Hoje o MTG é uma força com uma visão de passado, com uma ação cotidiana jamais vista – a não ser nos processos de nazi-fascismo - e com bandeiras de futuro, que inclusive não só ficam na esfera clubístico do lazer, mas acham que eles têm uma proposta ideológica de transformação da sociedade. Isso se expressa em várias operações que eles fazem com uma legião de militantes nas estruturas sociais. Ocuparam o Estado, privatizaram grande parte do Estado, especialmente as áreas de educação e turismo; ocuparam os meios de comunicação – eles mesmos um produto da indústria cultural – e nas suas últimas investidas a coisa começou a ficar muito mais assustadora, porque não só desejam ter uma influência dentro dos educandários, mas já projetam ter as próprias escolas no Ensino Fundamental e Médio e Universidades tradicionalistas, ... não é!? Todo esse conjunto de coisas demonstra que nós temos uma ação militante concreta no cotidiano do Rio Grande do Sul e em outros estados da Federação. Isso já ultrapassou de muito aquelas preocupações digamos bucólicas, telúricas, de ter unicamente um sentimento com as coisas do Rio Grande. O que nós temos hoje é uma operação militante ideológica que opera com o desejo de ter uma influência política e comportamental na sociedade.

Já chegou até você alguma repercussão do Manifesto, seja ela positiva ou não?

Até agora não surgiu nada articulado. O Manifesto é muito claro. É um texto cuja preocupação maior é chamar a atenção da cidadania com um ponto de vista crítico do que isso representa. Mas do MTG como um todo, quando as coisas chegam num patamar – não precisa nem ser intelectualizado, mas um pouquinho mais culto - começam rarear os seus porta-vozes. Certamente o Manifesto está sendo analisado por seus ideólogos. O que se tem visto são aquelas coisas chulas, bagaceiras, escatológicas, ofensivas – que é tipo dessa cultura, porque essa é uma cultura da violência, uma cultura do deboche, uma cultura da rusticidade, do abagualamento, da vulgaridade. Mas o Manifesto tem provocado também respostas sinceras de tradicionalistas. Porque o grande problema que existe no Rio Grande do Sul são aquelas pessoas - que são milhares delas -, que têm um sentimento lúdico de pertencimento sincero ao Rio Grande do Sul e que expressam isto no seu cotidiano. Não precisa identidade pra sentir e expressar isso. Mas esse sentimento acaba sendo cooptado, arregimentado por uma instituição da sociedade civil como o MTG, que estabelece uma normatização dos comportamentos. Então nem sempre a fronteira entre o que são sentimentos de pertença e o que é uma militância ideológica e MTGista está clara, está bem definida. É um monte de confusão nesse meio. Se usa bombacha logo é um tradicionalista, o que é um equívoco, se é gaúcho é tradicionalista, é outro equívoco. O MTG conseguiu uma operação muito concreta de se colocar como mediador entre um sentimento e a representação e a identidade. É uma coisa jamais vista. Mas na verdade isso é tudo muito confuso, e textos como o Manifesto são textos que acendem uma lamparina, um certo lampiãozinho da ilustração, dizendo em suma que não tem nenhum problema, que as pessoas continuem cantando milonga, dançando vaneirão, andando pilchado, usando bombacha... o problema é quando tudo isso entra numa lógica normatizadora e que alguém está com a rédea na mão dando um sentido cívico e ideológico. E alguns se colocam como porta-voz e como ideólogos de um determinado movimento.
Logo nas primeiras linhas do Manifesto está escrito: “Só é legítima a cultura que representar esta diversidade (referindo-se a diversidade cultural)”. O que você acha legítimo no Rio Grande do Sul?

A cultura legítima no Rio Grande do Sul parte de dois paradigmas. No primeiro lugar é ter um respeito pelos vários outros que construíram e constroem o Rio Grande do Sul. Ou seja, todas as etnias que formam o Rio Grande do Sul... e as várias mestiçagens, dependendo das regiões, são legítimas e devem estar no mesmo nível, no mesmo horizonte de representação. O MTG não acredita nisso. O MTG diz que o gauchesco é o identitário, está no topo da pirâmide e todo o resto pode ser aceito desde que esteja nesta lógica. A carta de princípios do MTG é clara: o MTG tem na sua carta de princípios a missão principal que é “pilchar o Rio Grande do Sul”, ou seja, “agauchar o Rio Grande do Sul”. Mas não é “agauchar” no sentido de um gauchismo histórico, é, na verdade, tradicionalizar, no sentido de transformar o MTG; que a população do Rio Grande do Sul acredite que o MTG é o arquétipo, é o tipo identitário, e todo o resto deve ser a imagem e semelhança do MTG e do que ele diz. Então além da legitimidade das etnias, nós temos a legitimidade da criação (o outro paradigma). Todos os grupos, os segmentos sociais, precisam ter o mesmo direito à visibilidade; e mais que isso: todos os grupos sociais, os indivíduos, têm que se inventar e se reinventar no seu tempo. E isso faz parte do processo da história, se refazer permanentemente. O MTG não acredita. Pra ele há um arquétipo que é inventado a partir da década de 40, que foi sendo especializado com o passar do tempo, e tudo deve derivar disso. O MTG não é uma questão da história. O MTG é uma usurpação e uma fraude, porque ele é uma invenção, ele se auto-inventou, evidentemente como um produto da indústria cultural. Só que ele quer se legitimar como se ele tivesse uma origem histórica, com base no mundo real do passado. Sendo que o Rio Grande do Sul nunca teve uma etnia básica, a própria idéia de gaúcho é uma idéia de mestiço, e é um Estado multicultural e multiracial.

Então esses dois pressupostos são os legítimos para lidar com a arte e a cultura no Rio Grande do Sul. É óbvio que quando você tem doutrinas e práticas políticas, com dirigismo dentro dos educandários, como tema o Rio Grande do sul, fundamentalmente em Passo Fundo, em que o MTG e os tradicionalistas invadiram as escolas, o princípio Republicano de educação está sendo usurpado! Mas pra isso funcionar como tem funcionado, é preciso fazer esta grande campanha como o MTG faz... e a idiotia completa dos meios de comunicação, que alimentam isso, de que a identidade do Rio Grande do Sul é o orgulho gaúcho! Isso é uma banalidade da complexidade histórica do Rio Grande do Sul e principalmente da complexidade cultural! O Rio Grande do Sul é muito mais complexo, muito mais interessante, historicamente muito mais criativo, humanamente inventivo do que os manuais do MTG e essas cartilhas que estão chegando nas escolas para o público.

Tem mais um trecho do Manifesto contra o MTG que diz assim: “Somos, em razão disso, contra todas as forças que dogmatizam, embretam, engessam, imobilizam a cultura e o saber em expressões canonizadas em um espaço simbólico de revigoramento e opressão a partir de um ‘mito fundante’”. Quem mais, além do MTG, que você cita, faz isso no Brasil?

O MTG se expandiu através de um desterramento dessa grande migração de gaúchos. O que é curioso nisso tudo - pra ver como isso é apenas uma doutrina - e todas as doutrinas fora da história são muito perigosas, porque elas acabam no fundamentalismo; a maioria dessas pessoas que se apresentam como gaúchos, esses falsos gaúchos, que na verdade assumiram uma figura tradicionalista nos outros estados, eles sequer no Rio Grande do Sul tinham uma vida campeira, uma vida a la gaúcha, e a sua grande parte sequer freqüentava CTG aqui. Mas quando eles saem, como uma forma de arrotar grosso, de se comportar através de uma forma arrogante, de não conviver com as outras culturas locais pra onde vão, pra não respeitar o folclore, o modo de vida local, mas sim para aparecer como um aculturador, típico da fronteira agrícola. Na maioria das vezes, eles se travestem fora do Rio Grande do Sul como os tradicionalistas. Sendo que no passado, muitos deles sequer viveram no Rio Grande do Sul! Então eles se adaptaram, aprenderam através de uma educação CTGista, com a liturgia e os rituais do CTG, e se apresentam fora do Rio Grande do Sul, aonde eles vão morar e produzir, com essa identidade.

Essa expansão tradicionalista cometeu e comete muitos crimes culturais Brasil afora, porque em primeiro lugar essas legiões que foram à frente, os pioneiros, ou às vezes nem é frente pioneira - nós podemos pegar no leste de Santa Catarina, no litoral, a própria ilha de santa Catarina, comunidades com culturas seculares, dos açorianos, por exemplo -, ali chegam os rio-grandenses metidos a gaúchos, com poder econômico, se reúnem em 4, 5, fazem um CTG, fincam um galpão rústico dentro de uma arquitetura que é milenar, levam essas festas da indústria cultural e alteram completamente a arquitetura, o modo de vida e as festas locais. Além de tudo essa é uma cultura que tem uma densidade desrespeitosa com a diferença. Não consegue viver a diferença, e o mais incrível, quanto mais se afasta da fronteira, mais pacholento é o tradicionalismo... não é?!, mais fulgurante, mais de ribalta, mais artificial, porque quando não se tem os limites dados pelo real a liberdade é completa. Então você vê coisas que não têm mais nada a ver uma mínima âncora com os tipos concretos. É por isso que o homem real de fronteira, o homem que anda à cavalo, o homem que tem aquela postura taciturna, respeitosa, calma, interiorana, ele olha o movimento do tradicionalista e pensa que é uma ofensa. Às vezes ele não consegue verbalizar isso, porque ele não é um intelectual, mas ele sente que é uma artificialização, quando não uma carnavalização do ser rio grandense real; que é uma distinção completa do seu cotidiano, do seu modo de vida e é essa coisa de palco, de salão, de elite que é o tradicionalismo.

Como um historiador, qual, na sua opinião, foi a maior “mentira” já contada na “história” ou nos “livros de história”?

O tradicionalismo escreve e justifica por outro lado o seu calendário de eventos. Ou seja, todo fundamentalismo, e o tradicionalismo - por isso que o fundamentalismo às vezes se encontra bem com a indústria cultural, não é?! -, eles são atividades de eventos, a história entra apenas como uma justificativa do evento. E nisso muitas mentiras são construídas. Possivelmente, e de onde deriva o próprio orgulho tradicionalista, que é a Revolução Farroupilha, seja a maior mentira! Em cima da Revolução Farroupilha, que é um ritual cotidiano, e uma grande festa, no sentido gauchesco, em setembro, é uma alimentação da mentira. Qual é a primeira delas? É dito que durante 10 anos o Rio Grande do Sul se levantou contra o Império. Isso é uma mentira. Os Farrapos eram a minoria e nunca chegaram a 5%. O que ocorreu na verdade é que a maioria do Rio Grande do Sul ficou contra os farrapos. E a Revolução Farroupilha foi, antes de tudo, uma guerra civil. Estancieiros – que eram a favor do império – formaram a sua milícia, o seu exército, e combateram aqueles outros estancieiros que estavam fazendo uma reivindicação armada, que chegaram ao separatismo. E mesmo quando o Netto proclamou a República Rio-grandense, a maioria dos Farrapos eram contra a separação, usaram isso apenas como moeda de barganha, porque eles não eram Republicanos. E essa é outra mentira. Que tem origem no movimento Republicano do século 19, quando os Republicanos Positivistas, na sua maioria, se legitimaram, dizendo que já existia no Rio Grande do Sul, no passado, um movimento Republicano em que esse movimento vinha dos Farrapos. Então quer dizer, o nome República Rio-grandense não significa que os líderes Farroupilhas fossem Republicanos, até porque todos eles eram senhores de escravos. Qual é o problema sério que nós ficamos hoje no Rio Grande do Sul? É que essa gente constituiu um panteão de heróis que hoje, uma população, vivendo no século 21, cultua como seus heróis senhores de escravos!!! Bento Gonçalves, Canabarro, todos esses! Todos eram senhores de escravos! Então nós temos um problema sério! E é esse limite que vai ter uma influência na formação cultural, sensitiva, política das crianças, dos estudantes e da própria população, que fica fazendo parada, festa, que morre pela cultura gaúcha, que na verdade tem toda ela um conteúdo escravagista. Logo nós ainda não fizemos no Rio Grande do Sul, mentalmente, a Revolução Francesa! Essa é a Revolução Farroupilha, que é a base da sustentação de legitimidade do MTG, e que sofreu uma versão completamente mentirosa! Nós temos dezenas de livros escritos no Rio Grande do Sul, nos últimos 30 anos, obras excelentes, (publicadas)das universidades, só que o negócio chegou a um estágio de demência, porque quando chega em setembro... aliás, historiador fala muito pouco na mídia do Rio Grande do Sul. Porque quem fala é patrão de CTG, com qual legitimidade eu não sei! Mas os meios de comunicação, quando têm que buscar fontes pra falar de história, geralmente ouve patrão de CTG. A mesma coisa que quando faz previsão de ano pra ano entrevista a vidente. É a mesma consistência, digamos assim, no método comunicativo que nós temos no Rio Grande do Sul. Normalmente, essa educação e essa cultura de mídia dogmática, desde que se nasce no Rio Grande do Sul vai se fazendo essa grande lavagem cerebral nas pessoas, que quando elas começam a chegar na maioridade intelectual, quando começam a ler outras coisas, entrar em contato com fontes acadêmicas e historiadores sérios, elas começam a entrar numa paranóia! Porque elas “achavam” que tinham valores baseados em exemplos do passado, que quando elas começam ter as fontes comprovatórias do passado, elas começam a perceber que a sua identidade não tem consistência histórica! É, na verdade, uma grande teatralidade contemporânea, que vai desde uma formação educacional e sustentada cotidianamente por uma cultura, por uma mídia, por uma música, por um calendário de eventos que estabelece uma liturgia em que as pessoas são dogmaticamente lembradas, testadas e desafiadas a serem a sua identidade. Já existe um grande espelho com um retrato fixo na frente das pessoas: “Essa é a sua identidade, você precisa se adequar a ela”! E a imagem não é a da pessoa, mas você tem que ser igual a imagem que é fixa no espelho!
Jean – O Tradicionalismo, que teve seu alavancamento a partir da década de 40, não seria uma xenofobia no plural, que acabou diluindo certas contestações que poderiam surgir depois, a respeito da história do Rio Grande do Sul?

É também. O Tradicionalismo tem elementos xenófobos e se alimenta disso. Mas o que tem de mais curioso nisso é que é uma valentia e um orgulho inócuo e sem sentido. Que não presta pra nada! Ele não opera, não é..., cotidianamente numa transformação positiva das sociedade. São homens e mulheres que se dizem embriosos, pessoas que estão sempre em guerra. Com uma audição de uma hora de um programa de rádio gauchesco morre mais do que em bang-bang e filme policial americano, porque é pontaço de adaga, de lança, de tiro de trabuco... o que se mata de castelhano... já limparam os castelhanos da face da terra... mulher tem mais que pastel em cancha de carreira (risos)... quer dizer, isso é uma coisa de um sentido... ele tem tanto esbanjamento simbólico, que por isso mesmo ele é vazio! É vazio no cotidiano, mas termina sendo um elemento escapista fantástico, porque o reino da necessidade das pessoas... é assim, como é que elas fogem do reino da necessidade? Para o reino simbólico! Então o tempo livre das pessoas não é um tempo para adquirir cultura e conhecer o seu tempo. O tradicionalismo é uma forma de fugir de seu tempo! De ir para um século 18 e um passado muito vago, onde você é caudilho, você monta à cavalo, quando precisa de mulher passa a mão numa e bota na garupa, usa um tempo depois larga de novo... vive chorando as mágoas das mulheres perdidas num buchincho... então são caricaturas sobrepostas à caricaturas que ocupam de tal forma o cotidiano das pessoas – porque elas vivem isso! – Elas suportam o seu reino da necessidade e do trabalho, saem do banco e vão para esse mundo hipotético. Trabalha em obra, no comércio e vai para esse mundo hipotético. O seu tempo livre, o tempo de reflexão, nunca é um tempo voltado para o seu cotidiano completo. Então se é um pressuposto interessante que o tempo livre das pessoas, o chamado reino da liberdade, no sentido de se pensar no seu tempo e para esse tempo é construído uma completa ilusão, as pessoas notadamente estão fora de seu tempo! Só que isso de um ponto de vista de compreensão de seu tempo. Mas quando um movimento como o Tradicionalismo se tornou em algo militante e profissional... quer dizer, hoje há uma culinária, uma indústria têxtil, uma indústria de festival, uma mídia, uma indústria de rodeios que se alimenta disso! Ou seja, isso começa a operar concretamente na vida! E você começa a perceber em sala de aula os efeitos culturais e intelectuais disso. Assim quando um devoto abre a boca e você já sabe qual o seu imaginário e a sua fé, quando um tradicionalista começa a falar, pela sua dureza de pensamento, pelo seu dogmatismo, pelo seus únicos paradigmas “eu sou tradicionalista e o resto é o resto”, você já percebe de cara. Numa análise mais profunda eu diria que o tradicionalismo acabou se constituindo numa força cultural de efeito no cotidiano que formou um lastro de uma incapacidade de ler o mundo! A isso que a gente chama “ausência de ilustração” substituída por um fundamentalismo! Quer dizer: a vida é uma repetição e não uma construção cotidiana. É um projeto fundamentalista nesse sentido!

Cleber- A gente olha, por exemplo, para essa cultura de dogmatismo, sendo transposta aqui no Rio Grande do sul para outras esferas de produção de indústria cultural. Por exemplo o Rock. Encontra-se gente que idealiza a década de 60, 70, que são aqueles movimentos, e aí cria um certo clubinho que pode virar um MTG Rock... às vezes eu penso nisso. E nada de chegar a um elemento externo, ou seja, o cara gostar de baião já não é bem visto e excluído. Isso seria uma certa herança simbólica?

As crenças estabelecem dogmas e têm coisas comuns, independente se o cara vai fundar o talibã ou fundar um grupo cultural. É um esforço ideológico de criar os fundamentos, quase sempre uma articulação que tem um corpo, mas as formas de operação de todo o grupo dogmático é o mesmo. Os paradigmas são os mesmos. Se você pegar um grupo que o seu dogmatismo é uma determinada fé, e o outro o seu dogmatismo é uma determinada crença política, a operação no cotidiano, de legitimação, de reconhecimento do outro, fundamentalmente a gente tem que observar que os processos de reconhecimento são fundamentais. Quem vai atendendo as normas vai sendo recompensado. Se tu escrever determinada coisa que está de acordo com as normas, passa a circular naquele determinado meio. Se você cantar igualmente, se você... então há todo um mecanismo de funcionamento... ele (o MTG) tem muitos reconhecimentos pra ir legitimando pessoas e fazendo a reprodução! São concursos internos, um festival com jurados que vão sacramentar a coisa ou não. Você pode observar que a grande energia do MTG é construída em disputas internas. Pra escolher as primeiras-prendas de todas as categorias, os peões, é sempre uma disputa e guerra interna, em que tem que estudar a cartilha do MTG, e estudar quer dizer “reproduzir” o que está ali, as indumentárias, os regramentos das músicas... é tudo normatizado e será reconhecido e premiado aquele que fizer melhor aquela determinada repetição. Os dogmatismos, principalmente os culturais, têm um dinamismo muito grande na sua criação! Se a gente pensar em toda a construção do nazi-facismo, a dinâmica interna de funcionamento, de instâncias, de reconhecimentos, de papéis... e aí se começa a pensar em todos os papéis que tem dentro do MTG, as nomenclaturas para homens e para as mulheres, as várias idades, diferenças, os lugares de cada um, posteiro, agregado, peão... tem uma série de reconhecimentos e lugares que as pessoas disputam! Entram numa lógica de disputa para serem reconhecidas no meio, e o sistema tá sempre alimentando isso. Hoje são milhares de pessoas para quem o tradicionalismo é um modo de vida. Deixou de ser aquele lugar fora do reino da necessidade! Não! Há uma profissionalização, e são milhares de pessoas que dependem desse sistema!

Agora vamos mudar um pouco de assunto...quando você decidiu que faria jornalismo e história?

(silêncio) Pois é... deixa eu me lembrar que faz tanto tempo (risos). Eu comecei no jornalismo inicialmente escrevendo crônicas e tive um jornal. No meu primeiro jornal eu tinha 16 pra 17 anos.

Você era o dono do jornal?

Eu era o “diretor”, juntamente com outros colegas. Era um jornal que tinha uma origem num colégio religioso. Ele foi proibido no colégio (risos) por críticas de comportamento, obviamente; e esses estudantes, que eram um menino e três meninas, me procuraram para colocar o jornal fora da escola, e como a cidade não tinha jornal....

Qual cidade?

Era Capinzal. Eu estava passando umas férias na época (risos) e aí montamos o jornal. Eu fiquei na cidade jogando futebol, vôlei, trabalhando um certo tempo e esperando para ir servir (no exército).

Como chamava o jornal?

O Furo! E era uma época terrível, 1972! Houve uma tentativa de fazer alguma ligação com o jornal, por ser no oeste catarinense. Eu tinha ido de São Gabriel, na fronteira do Rio Grande do Sul, pra essa cidade, que era a cidade onde eu, concebido em carazinho, acabei nascendo quando o meu pai foi trabalhar num frigorífico lá. E eu voltei para Capinzal, fui numas férias, esperando, naquela dúvida que todo o pobre tem de que enquanto não passa a maioridade vai acabar servindo. Mas o jornal deu certo, eu fiquei na cidade, até ter um acidente violento fazendo uma matéria. Eu vendi a minha primeira matéria pro Correio do Povo e nós fomos fazer a matéria do “Trem Romeiro”, era um trem que descia do Paraná até Marcelino Ramos para a Romaria de Nossa Senhora da Salete. E as pessoas, principalmente os colonos, faziam promessas e não interessava se tinha lugar ou não, eles iam subindo no trem. E eu fui fazer essa matéria! Pegamos o trem eu e uma menina, ela era fotógrafa e tinha 16 anos e eu 17. Esse trem terminou saindo dos trilhos e bateu num cargueiro de frente...morreram várias pessoas no acidente, dezenas mutiladas, e eu não morri porque era um triatleta: eu era nadador, jogava futebol de campo, de salão, e era o treinador do time de vôlei da cidade (risos)... mas foi muito violento porque eu esmaguei as duas pernas, quebrei um pé, sete costelas, um braço e a mão!

Todos - Báááá...

E aí eu terminei indo a Santa Maria para me tratar do acidente, onde o meu irmão fazia medicina. E aí eu, praticamente mutilado, levei 4 anos pra me recuperar. Isso terminou minha história de atleta...o meu irmão trabalhava num grupo de teatro, que se chamava “Teatro Universitário Independente”, que de certa forma era igual a esse jornal... porque foi proibido pela reitoria (risos). Daí não podia ser mais “teatro universitário” e passou a ser “Teatro Universitário Independente”, o famoso TUI. E eu ia todo o dia fazer o “ponto”, porque eu não tinha o que fazer! Deixa eu só ir fechar as minhas janelas...

(Nesse momento começou a chover forte. Enquanto Tau fechava as janelas, nós três discutíamos se meus mp3 estavam gravando certinho e começamos a falar dos livros nas estantes...)

Hein Tau.... todos esses livros que tem aqui... tu leu tudo?

Sim.... a grande maioria! Alguns são de consulta... mas acho que eu li mais que isso! (Tau Golin tem um acervo de 12 mil livros, a maioria deles onde nós estávamos).

G
eeeennte que chuva saliente....Continuando?

Sim! Então aí eu fui pra Santa Maria e além das minhas crônicas, eu acompanhando o cotidiano do teatro, comecei a fazer muita crônica de teatro, arte e cinema para os jornais locais, principalmente o jornal A Razão. Até que um dia - eu já começando a andar -, faltou um ator no grupo em uma peça infantil! E como eu sabia todos os textos de cor eu entrei em cena (risos)! A partir dali eu acabei trabalhando, entre outras coisas, uns 8 anos como ator, autor, diretor de teatro. Mas foi no teatro que eu, pesquisando pra escrever uma peça sobre as missões e Sepé Tiaraju, entrei mais na história, e obviamente, pelo meu próprio estilo, comecei a fazer crítica sobre aquela bibliografia que eu estava pesquisando para escrever uma peça de teatro que eu acabei nunca terminando, e no lugar da peça eu escrevi alguns livros sobre as Missões. A partir daí, até pra sustentar as polêmicas que iam surgindo, eu tinha que me debruçar sobre obras de história. A partir de então essas 4 coisas sempre andaram comigo, que é o esporte, artes, jornalismo e história. São 4 coisas que eu faço permanentemente, não tiro uma nem outra. Elas têm o mesmo peso.

Quando você falou do acidente, eu lembrei da história do Grêmio, que você foi centro-médio do Grêmio!

Eu comecei muito novo. Com 14 anos eu era triatleta, mas não tinha esse termo. Eu jogava futebol, nadava (tanto é que eu freqüentava o Tenisclube, como convidado, sendo vileiro, porque eu nadava pelo clube). E eu e outro amigo, nos domingos nós fazíamos apresentações no rio Vacacaí, com saltos mortais e coisas.... (risos) Isso no tempo de piá, com 12, 13 anos. E nós éramos assessores de um salva-vidas coxo e bêbado (mais risos), um ex-pescador que era contratado pela prefeitura da cidade no balneário do rio Vacacaí. O balneário era um taipão que fizeram no Vacacaí, na Vila Maria, e a única orientação que nós tínhamos era ir nadando, puxsnado uma câmera de caminhão, com uma corda, e ele (o salva-vidas da prefeitura) ficava na barranca... e a orientação era o seguinte: por via das dúvidas dá um soco na cabeça! Então eu peço desculpa pra todas as velhinhas que eu espanquei na minha infância no Balneário do Vacacaí (risos)!

E toda a minha família, em São Gabriel, são jogadores de futebol. Nós tínhamos o time campeão de futebol de salão da comunidade. Um dos times, o Independente, que é o time da Vila Capioti, é o time que, metade dele, era dos meus primos. Dali eu comecei a jogar até receber o convite de ir pro Grêmio. Eu tinha 16 anos e já jogava nos profissionais desde os 14. Aí eu tava naquela dúvida, fazendo teste, ficando por Porto Alegre, quando eu recebi o convite pra jogar futebol de salão em Santa Catarina, que na época era o grande celeiro e se pagava melhor. Então eu, arrimo de família, o mais velho, tinha perdido o pai com 12 anos, vi a oportunidade de ganhar uma grana e depois voltar ao campo, ser uma coisa momentânea. Mais tarde, quando eu morei em Porto Alegre, eu ingressei nos veteranos do Grêmio e joguei com várias pessoas do meu tempo, que eu fiquei naqueles meses....

Depois que tu sai do Grêmio vem a história de Capinzal?

Isso. Eu saí do Grêmio pra ir pra Capinzal.

Você já escreveu 38 livros. Quando foi a época que você sentiu necessidade de escrever tudo o que lia e estudava?

Eu tenho uma postura metodológica que é o seguinte: a gente escreve, em primeiro lugar, pra gente. Escrever é um exercício de reflexão. Por isso que eu tenho os dois pés, as duas mãos e o corpo inteiro atrás com quem escreve para os outros. O escritor sincero faz da escrita um exercício para entender o mundo e os fenômenos do mundo. É um estudar, é um exercício. Esse é o ponto de partida. E o segundo ponto de partida é de que o conhecimento é uma legítima disputa de interesse público! Não significa que tu queira fazer da sociedade a sua imagem e semelhança, mas tu tem que estabelecer, com os outros interlocutores da sociedade, um nível de debate para que a vida venha a ter sentido, sentido dessa sociedade, conhecer a sociedade, as relações com o passado. Então um historiador, um escritor, um cronista, em primeiro lugar ele não é um pregador, ele é um sujeito que busca fazer esse sentido de entendimento e de um questionamento profundo do sentido da vida e do indivíduo em sociedade. Tanto a sociedade, quanto o indivíduo, são partes de uma mesma reflexão, e entender isso já é uma grande coisa! Eu diria que fundamental!

E dentro dessa sua lógica de “escrever pra gente”, o que você acredita que já fez de melhor e qual o seu livro que você considera o mais representativo?

A gente sempre acha o mais importante aquele que ainda não escreveu. Eu tenho um hábito de não retornar ao que eu escrevi. E isso de certa forma é problemático. Porque às vezes você vai escrever sobre um tema que já escreveu há 10 anos e não consegue desenvolver a complexidade que tinha encontrado. Em outros momentos não, você vê que um determinado assunto que você enfrentou, numa determinada época, adquiriu outras complexidades, outros sentidos, se aprofundou mais e você precisa revisitá-lo. Então no meu modo de ver não existe texto definitivo. Por mais metodologicamente que eles estejam sustentados, eles são documentos de uma determinada época que têm a ver com a documentação disponível naquele tempo, a capacidade intelectual circunscrita naquele período, e por isso que você tem que sentir a necessidade de escrever; quando você tem preocupações culturais, históricas e tem momentos que quase sempre são determinados por específicas exigências sociais. Quando você vê que um fenômeno tem implicação direta na vida das pessoas, aí eu acho que esse é o momento do escritor entrar. O Tradicionalismo é isso! Me lembro do poeta Paulo Hecker Filho... ele tinha uma boa vontade demais com a minha capacidade intelectual. Ele me dizia “tu é um cara genial! Não perca tempo com essa grossura, com esses bombachudos, com essa bagualice! Não perca o teu tempo, tu pode dar muitas outras contribuições!”... e eu não respondia, porque eu fazia a leitura que o que essas pessoas fazem acaba influenciando a vida de milhares de pessoas. Então, eu que sou do interior, tive e de certa forma tenho uma vida campeira, conheço relativamente a história do Rio Grande do Sul, do Prata e da América, tenho uma determinada sensibilidade artística e humana, não é?!... E vejo um vazio intelectual muito grande nesse meio! Onde está em jogo a vida de milhares de pessoas, está em jogo a identidade do Rio Grande do Sul! Em grande parte a hegemonia tradicionalista, além de ser uma especulação com o popular, se deve a uma ojeriza que os intelectuais, que os acadêmicos tem em se dedicar a esses temas, o que é uma irresponsabilidade intelectual, porque nós terminamos tendo acadêmicos e intelectuais cujas idéias estão fora de lugar, mas eles estão mais fora de lugar ainda! Eles estão em outro espaço e é uma irresponsabilidade!

Qual é, na sua opinião, o maior “câncer” da academia?

É um conjunto de coisas, mas o problema da academia é achar que ela está acima de tudo e de todos e das coisas, que basta! Ela cria um ritual em si mesma, e um ritual das aparências, que é de um vazio, de uma hipocrisia impressionante! Tem instâncias universitárias que nunca abriram um livro meu, não sabem quantos livros eu escrevi, mas que discutem que eu vou pra universidade de sandália (risos)!... inclusive um bacharel, que se assina como doutor, chegou a comentar uma época que eu nem parecia um doutor porque eu andava de sandálias (risos)...

Todos - Ridículo!
Entende? Então esse é o ambiente das aparências que...

A fogueira das vaidades...

É... e ao lado tem muitos colegas que estão afim de produzir, que sabem que a academia é um lugar pra reflexão, um lugar pro saber! Eu, durante muito tempo, defendi que a academia é o último lugar da liberdade. Atualmente eu acho que é o último lugar da liberdade muito relativa! (risos)... porque os interesses nem sempre estão implícitos, então você termina construindo redes de reflexão, você olha pra todo esse patrimônio que eu tenho, de acervos, eu gostaria de estar compartilhando, num ambiente de alunos, com outros colegas! Mas não há a possibilidade disso, porque cada um cuida do seu e dos seus. Eu tenho uma biblioteca, entre aqui e em Porto Alegre, de praticamente 12 mil livros, com um acervo documental de 800 mil documentos e microfilmes e com um acervo particular! E isso é um absurdo! Não existe política de trabalho em rede, de gabinetes confortáveis e privados. Eu gostaria muito de trabalhar num ambiente em que se tivesse um espaço de trânsito de saber de pessoas e de segurança de acervo.

Hoje não há um descaso total por parte dos alunos, por exemplo? Ninguém tá nem ai?

Se não tem recepção tem que usar métodos jesuíticos! Ele vai ter que passar pelo conteúdo de qualquer forma. O problema é que o ponto de vista é de reflexão. A universidade não é só a sala de aula, é um lugar de se estar! De trocas! Portugal e Espanha fazem isso, um lugar de se “estar”, circular. Uma universidade não é ir na aula. É também ir na aula! Uma universidade é um lugar de trocas. Não dá pra ter uma visão de ir na aula e no máximo ir num barzinho... a grande maioria dos alunos hoje não conhece nem o prédio ao lado do lugar onde estuda!

Quer dizer, a universidade não pode ser um lugar que não tenha distinção com o cotidiano da cidade... ela tem que ser um espaço em que o sentido das coisas pulse! A função da universidade é de vanguarda, que tire a comunidade da mediocridade e puxe para uma outra atenção! É um lugar de dúvidas e tentativas de respostas.

Dá pra fazer um segundo tempo desta entrevista... eu tinha mais coisas pra perguntar...

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